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Publicado em 27 de agosto de 2018 às 09h18min
Tag(s): ADUFRGS-Sindical
Nesta entrevista, a secretária geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e vice- presidente da Internacional da Educação para América Latina (IEAL), Fátima Silva, denuncia o impacto perverso da mercantilização na qualidade do ensino e defende a educação como um bem público e um direito humano.
A OMC E A “MERCADORIA EDUCAÇÃO”
“No Brasil, 75% dos alunos da educação superior estão matriculados em instituições privadas de ensino. Essa expansão coincide com a criação, em 1995, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o início do Acordo Geral de Comércio (AGCS), que concedeu o suporte jurídico internacional para transformar a educação em ‘serviço comercial’. Desde então, a educação passou a ser vista como uma commodity, sujeita às leis do mercado, que atrai investidores e grandes conglomerados financeiros e vem delineando um novo conceito de universidade no mundo.”
O LUCRO EM PRIMEIRO LUGAR
“As transformações na educação superior, associadas ao surgimento desse novo padrão, podem ser analisadas sob diferentes perspectivas, como formato, público, currículo e objetivos sociais e econômicos. Porém, de fato, o tripé ensino, pesquisa e extensão perde força para uma ideia mercantilista da formação, que visa, primordialmente, ao lucro do capital investidor.”
KROTON DOMINA EDUCAÇÃO SUPERIOR E JÁ AVANÇA SOBRE A EDUCAÇÃO BÁSICA
“Em termos globais, o mercado educacional brasileiro é um gigante em número de matrículas e potencial de alunos. Hoje, a educação superior está praticamente dominada pela Kroton, maior conglomerado educacional do mundo, com mais de um milhão de alunos e que já avança sobre a educação básica. A Kroton se expandiu defendendo a ideia de internacionalização das instituições acadêmicas, com mobilidade docente e discente, e a formação de um amplo mercado de cursos e currículos. Neste processo, expandiram-se instituições e diferentes tipos de empresas educacionais, oferecendo um vasto cardápio de formação acelerada para alunos que necessitam de um diploma para atender as exigências do próprio mercado.”
IE LANÇA CAMPANHA MUNDIAL
“As consequências do processo de privatização do setor da educação estão sendo acompanhadas, com preocupação, pelos movimentos sociais que defendem a educação pública como direito e bem social. Neste sentido, a Internacional da Educação (IE), federação que reúne mais de 400 associações e sindicatos de 171 países, representando mais de 32 milhões de profissionais do setor, lançou a campanha mundial Educar, Não Lucrar. O objetivo é denunciar os efeitos negativos da visão mercantilista sobre a qualidade e, principalmente, sobre a concepção da educação.”
EDUCAÇÃO: UM BEM PÚBLICO, UM DIREITO HUMANO
“O principal objetivo da IE com a campanha é barrar o processo de mercantilização e privatização da educação pública no mundo, com especial foco na América Latina e na África. Estes dois continentes são mais duramente atingidos pelos ‘incentivos’ da Organização Mundial do Comércio (OMC), da OCDE e também dos governos locais.
O que queremos é garantir educação pública para todos os cidadãos do mundo, desde a primeira infância até a universidade. A educação como um bem público, um direito humano, ofertada e garantida pelo Estado. Temos essa preocupação porque o avanço da mercantilização, da privatização do setor, tem feito a educação perder esse caráter. Não sendo um direito, só quem tem dinheiro, tem acesso.”
RECURSOS PÚBLICOS SÃO O OBJETO DO DESEJO DOS GRANDES CONGLOMERADOS NA AMÉRICA LATINA
“A América Latina tem uma grande população jovem, em idade de ingressar no ensino superior, mas que está fora do sistema. O objetivo dos grandes conglomerados educacionais é atrair esse público para a rede privada. O processo, porém, é diferenciado do resto do mundo. Aqui, eles querem ter acesso aos recursos públicos para ofertar uma educação privada. Recursos públicos que podem ser transferidos como incentivos fiscais e bolsas de estudo. Atuando como lobbystas, eles conseguem que os parlamentos modifiquem leis, para legalizar o ingresso do capital estrangeiro no país. É uma questão de mercado. A educação privada, que antes era muito ligada às igrejas confessionais, hoje está nas mãos de grandes conglomerados. Eles aplicam na Bolsa de Valores e têm no lucro o seu principal objetivo.”
ESTRATÉGIA É DESPRESTIGIAR A EDUCAÇÃO PÚBLICA
“As instituições públicas de ensino também são alvo de fortes campanhas de depreciação. As universidades, por exemplo, têm o seu prestígio abalado pelos fortes contingenciamentos orçamentários. No ensino médio, todas as notícias sobre as escolas públicas são no sentido de desprestigiá-las, sempre reforçando a ideia de que ‘o privado é bom’.”
ENSINO À DISTÂNCIA: FORMAÇÃO ALIJEIRADA E INDIVIDUALISTA
“No Brasil, o processo de mercantilização da educação causou um choque muito brusco. Do dia para a noite, por exemplo, o grupo Kroton comprou as maiores faculdades do setor privado do País. E tudo isso, é importante a gente frisar, foi feito dentro de um cenário de legalidade, em que leis são feitas para que a iniciativa privada possa ter acesso aos recursos públicos. Outro aspecto é que, no Brasil, em função de nossa dimensão continental, há um forte investimento na educação à distância, que tem uma qualidade questionável. Nós entendemos que a formação para a profissão é uma formação do indivíduo e, também, do coletivo. Porém, como o objetivo é lucrar, os grupos privados usam muito as novas tecnologias de comunicação para fazer uma formação aligeirada. Isso é uma realidade, principalmente, nas licenciaturas. Quem, de fato, garante a pesquisa, garante a Ciência, desde o início até a conclusão, são as universidades públicas, é o investimento estatal. Nenhuma universidade privada paga 10 ou 15 anos para um investigador fazer uma pesquisa.”
CURRÍCULO EM DISPUTA
“O programa brasileiro de distribuição gratuita de livro didático é o maior do mundo. Razão pela qual os grupos privados atuam fortemente no setor, fazendo articulações dentro do próprio Ministério da Educação. A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, prevê que a distribuição de livros, até agora feita a cada três anos, passará a ser anual. Mas a disputa não é só do mercado editorial. Também existe uma disputa curricular, de conteúdo.
Hoje, mais ou mesmo 70% da educação superior estão nas mãos dos grupos privados, que chegaram aqui, se expandiram e querem se expandir mais. O ensino médio abre esta nova possibilidade de crescimento, favorecida pela matriz curricular do governo federal.”
A LUTA É NA POLÍTICA
“As ações de combate à mercantilização da Educação são um conjunto de iniciativas que precisamos empreender. A primeira é atuar na política, dentro dos organismos que promovem a educação privada, como a OCDE, a OMC, a Unesco, que, aliás, está bastante relegada dentro desse processo. Também temos que atuar dentro dos mecanismos e organismos multilaterais e diretamente na política e nos organismos econômicos dos países da América Latina: na eleição de parlamentares, governadores e presidentes ligados a uma visão pública de políticas de Estado.”
CONHECIMENTO E PRESSÃO POPULAR
“Os sindicatos precisam fazer uma intervenção qualificada, investir cada vez mais em pesquisa, em contraponto às pesquisas oficiais. Participar do debate com conhecimento de causa, com investigação, e aliar tudo isso com a pressão popular, com a participação dos estudantes, entendendo que a educação é um direito humano.
O papel da IEAL é promover a unidade do movimento sindical e contribuir para que todos os sindicatos de educação, independente do nível de organização, tenham um plano de defesa da educação pública.”
RETROCESSO DE 20 ANOS
“A sociedade está comprando a ideia de que o que é público não serve. Com a EC 95, a universidade sofre um retrocesso de 20 anos. Voltamos para a década de 90, mas mais acelerado. Este ano mesmo, todas as universidades públicas estão fazendo vestibular para selecionar o seu público. E quem entra? Aqueles que frequentaram escolas privadas. E o que as escolas privadas fazem? Utilizam este fato para fazer propaganda do aluno bem-sucedido e, assim, ampliar o seu negócio.”
Foto: Jordana Mercado
Fonte: Ascom ADUFRGS-Sindical