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Publicado em 08 de setembro de 2020 às 15h12min
Tag(s): Pandemia de coronavírus
Diversos estudos têm apontado a disparidade do impacto da pandemia, que tem afetado algumas populações de forma desigual e perversa. Ainda que homens e mulheres sejam infectados na mesma proporção e que a taxa de sobrevivência delas seja expressivamente mais alta, a sobreposição gênero, raça e classe, somada à distribuição geográfica e à condição de habitabilidade, revela o aprofundamento, na crise do coronavírus, de camadas de vulnerabilidade a que uma grande parcela das mulheres já está submetida.
As mulheres estão na linha de frente dos cuidados prestados aos infectados pela Covid-19. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as mulheres representam 70% da força de trabalho na área da saúde e do terceiro setor. No Brasil, 85% das enfermeiras são mulheres, de acordo com o mais amplo levantamento sobre a profissão já realizado na América Latina – a pesquisa “Pesquisa Perfil da Enfermagem”, produzida em 2013 pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Além do risco de contaminação, essas profissionais estão enfrentando um elevado grau de estresse, assumindo custos físicos e emocionais.
As mulheres também são as mais afetadas pelo trabalho não-remunerado, principalmente em tempos de crise. Segundo os dados do IBGE na PNAD Contínua de 2019, a proporção de mulheres que realizam atividades de cuidados é superior à dos homens: 36,8% das mulheres destinam seu tempo aos cuidados, contra 25,9% dos homens. Para afazeres domésticos, esse percentual chega a 92,1% para elas e 78,6% para eles. No contexto da pandemia, com escolas fechadas, a necessidade de cuidados dos idosos e serviços de saúde sobrecarregados, o trabalho não-remunerado aumentou.
A OIT alerta que a desigual responsabilidade pelo trabalho de cuidado prejudica a saúde das mulheres e limita sua ascensão econômica ao ampliar diferenças de gênero no emprego e nos salários (OIT, 2018). Dessa forma, as mulheres representam os maiores números em categorias economicamente vulneráveis, como diaristas e empregadas domésticas. Para essas profissionais restam apenas duas alternativas: estarem expostas à contaminação para manter sua renda ou seguir as medidas de isolamento social e arcar com as consequências do desemprego.
A realidade das mulheres que são mães solo é ainda mais crítica. Para essas mulheres não existe o compartilhamento social do cuidado com os filhos. Em um contexto de pandemia, devido à limitação das fontes de compartilhamento desse cuidado, como escolas e creches, a situação torna-se ainda mais difícil. Assim, as famílias monoparentais estão sujeitas à maiores condições de vulnerabilidade econômica, uma vez que a mulher é integralmente responsável pelos cuidados dos filhos e do sustento familiar.
Dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2018 demonstram que 56,9% das mães solo vivem abaixo da linha da pobreza. Para as mães solo negras esse número é ainda mais alarmante: 64,4% das casas comandadas por mulheres negras com filhos até 14 anos sobrevivem com até 420 reais mensais.
Outro fator que implica na maior exposição dessas mulheres à contaminação pelo coronavírus está relacionado à renda e ao lugar que habitam, em geral, áreas periféricas. Na maioria dos casos, mães solo em situação de vulnerabilidade se deslocam de forma poligonal pela cidade e prioritariamente por transporte público coletivo para conseguir acionar suas redes de apoio, enquanto homens na mesma condição econômica e racial se deslocam de forma linear, de casa para o trabalho, diminuindo sua exposição ao vírus.
Os dados para a população negra refletem o racismo estrutural presente na sociedade brasileira: 46,9% da população preta e parda estão inseridas em trabalhos informais, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2018). Essa população representa os trabalhadores com poucas proteções contra demissão ou licença por doença remunerada. Para manter a sua renda, na maioria dos casos, dependem do espaço público e das interações sociais que neste momento estão restritas para conter o avanço da pandemia.
Dessa forma, fica evidente que o racismo é um determinante social da saúde, pois expõe mulheres negras a situações mais vulneráveis de adoecimento e morte. A pesquisa realizada pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), destaca o impacto das desigualdades raciais na letalidade por Covid-19 no País. Os dados demonstram que dos pacientes internados da cor branca, 62,07% conseguiram se recuperar da doença e 37,93% vieram à óbito. Para a população preta e parda, os números se invertem: 54,78% de mortes, para 45,22% de recuperados.
A análise realizada pelos pesquisadores cruzando as variáveis de raça e escolaridade segue confirmando as consequências das desigualdades raciais e do racismo estrutural: a população negra apresentou maior porcentagem de óbitos em relação à branca em todos os níveis de escolaridade. No estudo, constatou-se que pretos e pardos sem escolaridade tiveram número de mortes quatro vezes superiores do que brancos com nível superior (80,35% e 19,65%, respectivamente). Além disso, considerando todos os níveis educacionais, pretos e pardos apresentaram proporção de óbitos em média 37% maior do que brancos. Fica evidente que o acesso a alguns direitos, como a educação, não exclui as demais desigualdades.
Em Curitiba, “cidade modelo”, os números não são diferentes: dados disponibilizados pelo Portal da Transparência da Central de Informação do Registro Civil (CRC) revelam que no período de 21 de março a 21 de agosto morreram 5.460 pessoas, número 11,3% superior ao mesmo período em 2019. Entre as pessoas brancas, que são maioria na cidade, os registros apontam um aumento de 6%. Entretanto, o crescimento para pessoas pardas e pretas foi de 31% e 35%, respectivamente.
As populações que historicamente estão em maior vulnerabilidade social também são aquelas em risco iminente nos momentos de catástrofes e crise. A disseminação e os efeitos sociais da pandemia estão fundamentalmente articulados ao modelo excludente de ocupação do território, que amplia a condição de marginalidade daqueles que já sobrevivem sob formas variadas de violência. É fundamental, no entanto, segmentar os dados e reconhecer quem são os sujeitos impactados por situações calamitosas, de emergência e risco, para a formulação de políticas públicas adequadas. Nesse sentido, reposicionar a complexidade da desigualdade territorial a partir da perspectiva interseccional garante maior amplitude para compreender a vulnerabilidade social e subsídios para lutar por cidades mais justas e inclusivas.
Fonte: Carta Capital