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Publicado em 30 de março de 2021 às 09h43min
Tag(s): Pandemia de coronavírus
Psicanalista detalha as implicações psicológicas dessa nova realidade de trabalho na vida de milhões de trabalhadores. Para combater a fadiga das reuniões online, Citi criou a sexta livre do Zoom
Deu no New York Times: a Free Zoom Friday (em português “Sexta-feira livre do Zoom”) foi uma iniciativa da executiva-chefe do Citigroup, Jane Fraser, comunicada aos funcionários no dia 22 deste mês, com o propósito de iniciar uma nova tradição na empresa: incentivar os trabalhadores a se afastarem, uma vez por semana, de plataformas, como o Zoom, que possibilitam as infindáveis reuniões e teleconferências tanto pelo celular quanto pelo computador.
Fraser afirmou no memorando que circulou no banco – o Citibank, um dos maiores do mundo – que “a indefinição das linhas entre casa e trabalho afetaram nosso bem-estar”, e que “depois de ouvir colegas do mundo todo, ficou claro que é preciso combater a fadiga do Zoom, que muitos sentem”.
Mas, resolver stress e ansiedade causados pela nova realidade que milhões de trabalhadores enfrentam vai além de iniciativas como a da instituição financeira. O psicanalista João Américo, técnico em reabilitação de dependentes químicos e pesquisador na área de saúde mental relacionada a transtornos ocasionados por racismo, explica que há uma série de outros fatores que devem ser levados em consideração quando a casa, o lar, passa a ser parte da empresa, como é o caso do trabalho home office.
Um deles, segundo o psicanalista, é levar em consideração que o capitalismo se adapta às realidades provocando alterações nas práticas sociais de exploração.
O trabalhador, de início, até se convence de que trabalhar em casa é uma vantagem, mas o que está por trás disso é o patrão achar que tem o poder de te explorar, te acionar a qualquer horário, inclusive sábados e domingos
A falta de controle dos limites é o ponto chave, como detectou a executiva do Citicorp. O trabalhador acaba incorporando o trabalho à vida pessoal.
“Muita gente está trabalhando mais horas porque não tem, simbolicamente, o cartão de ponto, o vigia, alguém que esteja olhando, controlando. O sujeito se sente na obrigação de trabalhar muito mais porque não tem quem diga que começou e terminou o seu trabalho”, diz o psicanalista.
“A gente se vê na obrigação de resolver problemas fora do horário, trabalhando muito mais horas, por causa dessa ausência do portão de entrada e saída do trabalho ou a figura do chefe, que está lá olhando seu trabalho. É uma implicação psicológica desse tipo de relação”, completa.
Com o home office, o sujeito acaba tendo horário, mas não para largar o trabalho
Situação também ainda não organizada é questão econômica. Para trabalhar em casa, o funcionário tem custos que muitas empresas ainda não repassam. “O trabalhador acaba cedendo seu espaço pessoal, seu ‘templo’ que é sua casa, gasta sua energia elétrica, sua internet, muitas vezes o seu próprio equipamento e não tem uma compensação financeira para bancar isso”, explica João Américo.
Computador pessoal, celular, tablet, a mesa, a cadeira – tudo faz parte das condições de trabalho que são responsabilidade da empresa. Portanto, diz João Américo, a empresa quando manda o trabalhador para o home office, não está fazendo “nenhum favor”, e sim preservando seu patrimônio – a força de trabalho que gera sua produtividade, seu lucro.
Além dos fatores já citados, outros pontos vêm sendo observados pelos profissionais que lidam com saúde mental. A nova realidade de rotina em home office mexe não somente com o trabalhador, ainda que ele se sinta confortável, mas com o restante da família.
O fato de ter seu lar engolido pela vida profissional, além de cercear a liberdade pessoal, afeta também toda a família.
Na avaliação de João Américo, cada vez mais exige-se que o trabalhador se adapte à realidade do teletrabalho, cedendo seu espaço pessoal para a empresa, tornando sua casa uma espécie de ‘puxadinho da firma’, o que reforça o ideário do patrão de que o trabalhador está 100% disponível.
João Américo reconhece que, com a pandemia, uma nova realidade foi imposta a todos e haverá sacrifício de ambas as partes. Mas, ele diz, é necessário entender que para a ponta mais fraca da corda – o trabalhador – a mudança de rotina é mais pesada.
“A gente precisa entender esses sacrifícios, mas precisa entender a realidade do outro também. Para o trabalhador, diminui o espaço geográfico da casa. As pessoas reservam um local pessoal e familiar e isso diminui o espaço para todos da família”, diz o psicanalista.
Não são poucos os exemplos para ilustrar. João Américo cita situações comuns em que o familiar, que também faz parte do ambiente da casa, tem de fazer silêncio, abaixar o volume da televisão e até mesmo deixar de circular em certos cômodos da casa para não interferir em uma reunião online com vídeo que, como constatou o Citi, afeta as relações familiares.
“As crianças têm que fazer silêncio, o cônjuge tem que tomar certos cuidados, porque aquele espaço agora é da empresa, é do trabalho”, ele diz.
O home office durante a pandemia também altera as relações pessoais entre os familiares. A constante presença em casa interfere, por exemplo, no desenvolvimento psicológico de filhos.
“As crianças estão lidando com uma referência familiar que é o presente-ausente, ou seja, o cuidador que está ali, perto dos filhos, mas não pode dedicar a atenção necessária que eles precisam”.
Segundo João Américo, essas crianças terão a tendência a desenvolver relacionamentos afetivos problemáticos no futuro. “Essas crianças serão os adultos que podem desenvolver relações conflituosas e relacionamentos ausentes, ou seja, com a pessoa que ‘some’, que está longe, que não responde mensagens”.
Ao mesmo tempo em que há empresas, em especial as grandes, que se preocupam com a saúde mental dos trabalhadores e oferecem algum tipo de assistência psicológica, grande parte delas, ainda não se debruçou sobre esse olhar de cuidado com seus funcionários.
O psicanalista João Américo aponta que se faz necessário, mais do que nunca, o diálogo entre trabalhadores e empregadores para que se possa preservar, minimamente, o equilíbrio emocional frente à essa nova realidade que ele acredita, vai perdurar após a pandemia.
“Há que se levar em consideração a realidade de cada um. Como é o ambiente em casa, se faltam condições, se há outras pessoas envolvidas porque, no fundo, a realidade individual é uma realidade coletiva quando se trata de home office”.
Nesse sentido, há exemplos como o dos bancários. No ano passado, no início da crise sanitária quando o isolamento social foi recomendado e, por consequência milhares de trabalhadores da categoria passaram exercer suas funções em casa, o Comando Nacional dos Bancários incluiu o tema como pauta permanente de negociações com os bancos, exigindo condições de trabalho.
Um estudo feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ramo Financeiro (Contraf-CUT) concluiu que o home office criou novas demandas e dificuldades. Entre elas a inadequação do ambiente da residência para a realização do trabalho, a falta de equipamentos e mobiliário adequados, a sensação de isolamento, a elevação de custos residenciais, a falta de controle da extensão da jornada de trabalho, além do surgimento de novos problemas de saúde.
Um desses problemas, relata João Américo, é o aumento do número de dependentes de substâncias psicoativas. Ele explica, de antemão, que o uso de certas substâncias é cultural mas quando houver uma mudança no propósito do uso, hà que se ter atenção.
“Se uma pessoa consome álcool, bebe uma cerveja, de forma recreativa, para comemorar um aniversário, por exemplo, é uma coisa. A partir do momento em que ela passa usar o álcool como fuga para seus stress, para seu desequilíbrio emocional, isso se torna um problema”, ele diz.
O psicanalista relaciona algumas substâncias conhecidas da maioria da população, que entram nessa classificação e, segundo ele, merecem destaque: álcool, tabaco (cigarro), psicotrópicos (Rivotril é o mais conhecido), a maconha e outras drogas ilícitas e o açúcar.
Sim, o açúcar. Ele diz que a compulsão por doces, em especial em horários aleatórios, como acordar de madrugada com uma incontrolável vontade de comer, pode ser um sinal de dependência. E pode ter como origem o stress causado pelo home office.
A advogada especialista em direito coletivo do trabalho, Lais Lima Muylaert Carrano, do escritório LBS Advogados, explica que ao contrário do vale-transporte, todos os demais benefícios, incluindo vale-alimentação e vale-refeição, devem ser concedidos indistintamente entre os empregados que trabalham nas dependências do empregador e os que trabalham em casa, principalmente os negociados coletivamente.
“O que define, de fato, se o vale-alimentação e/ou o vale-refeição será concedido não é o regime de trabalho adotado – presencial ou remoto – mas sim a existência de previsão contratual ou de norma coletiva a assegurar o pagamento do benefício pelo empregador”.
Também advogada do Escritório LBS Advogados, Fernanda Teodora Sales de Carvalho, explica que as empresas fazem uso de ferramentas de trabalho como e-mails vinculados com os smartfones, linhas telefônicas corporativas com WhatsApp, Ipads e Laptops com a intenção de receber respostas mais instantâneas em suas demandas, ou seja, dos trabalhadores.
“Ao mesmo tempo em que permite que o trabalho se exerça à longa distância, [a tecnologia] possibilita que o controle se faça do mesmo modo, pelo contato online ou outros meios. Basta que o empregador queira controlar, à distância, o trabalho do empregado, que terá como fazê-lo”, explica.
A CUT tem realizado seminários com participação de especialista para subsidiar negociações coletivas e elaboração de leis pelo Congresso Nacional, a fim de garantir direitos para os trabalhadores em home-office.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em novembro de 2020, no Brasil, cerca de 7,3 milhões de pessoas estavam trabalhando de forma remota, sendo 2,85 milhões trabalhadores do setor público e 4,48 milhões no setor privado.
Edição: Marize Muniz
Fonte: CUT Brasil