O vale onde as vacinas brasileiras morrem

Publicado em 14 de junho de 2021 às 09h56min

Tag(s): Ciência e Tecnologia



Com orçamentos minguados e infraestrutura insuficiente, o desafio dos cientistas que chegaram ao imunizante nacional é superar os gargalos que tornam a produção dependente de matéria prima importada e transformar as descobertas no laboratório em produto final
 
Há vários obstáculos para ampliar a produção de vacinas no Brasil e eles não se resumem aos cortes orçamentários. Em um documento de abril deste ano, o Grupo de Trabalho (GT-Vacinas) da Academia Brasileira de Ciências (ABC) apontou os principais desafios e gargalos da produção de imunizantes para uso em seres humanos no País. Eles vão desde os científicos e tecnológicos até o financiamento, passando por regulação, experimentação clínica, interação com empresas e criação de startups.

A lista de deficiências é grande, mas o GT destaca, entre elas, a falta de laboratórios com nível de biossegurança 3 e 4, certificados para trabalho com patógenos de alto risco; centros de pesquisa clínica com pessoal treinado para a concepção, coordenação e condução de ensaios e implementação de protocolos sobre Boas Práticas de Laboratório e de Fabricação (BPL e BPF). BPL e BPF são normas que regem a infraestrutura laboratorial para garantir a segurança da pesquisa.

A ausência dessa estrutura básica se soma aos cortes orçamentários, o desmonte de políticas públicas e o processo de desindustrialização pelo qual o País está passando há mais de 40 anos. Todos estes fatores acabam arrastando muitas das vacinas brasileiras direto para o chamado “vale da morte”, ou seja, o espaço entre o desenvolvimento de pesquisas básicas e a comercialização, onde a maioria das pesquisas esvanece por falta de investimentos ou estratégias antes de se tornarem produtos comercializáveis.

“O vale da morte é onde os projetos de vacina brasileira morrem”, resume o cientista Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas/ MCTI, co-fundador do Centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com a Fundação Oswaldo Cruz MG (Fiocruz).

Apesar do enorme esforço dos cientistas e pesquisadores em desenvolver as vacinas, diz Gazzinelli, falta a infraestrutura para passar da prova de conceito da universidade para o teste clínico. “Para isso, você precisa produzir proteína em condições especiais, fazer os testes de segurança em animais. Tudo isso no Brasil é muito limitado, você tem que fazer no exterior, e o custo lá fora é muito alto, é aí que grande parte dos projetos morre”, analisa.

Até que um imunizante possa ser aplicado na população, são várias etapas de comprovação, aperfeiçoamento e segurança que compõem as fases pré-clínica e clínica 1, 2 e 3, explica o cientista Pedro Guimarães, do Laboratório de Sistemas Nanoestruturados (Labnano), do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG).

“É preciso ter capacidade para produção de um lote piloto usando boas práticas de fabricação (BPF), uma estrutura de boas práticas de laboratório (BPL), tudo tem que ser rastreável. E aí esse é o nosso gargalo: não temos isso dentro da universidade”, afirma.

Líder de um projeto de imunizante baseado em genética (leia na página 7) Guimarães afirma que uma estrutura como essa, mesmo que fosse compartilhada no País, seria importante para que, por exemplo, tudo que é desenvolvido dentro das universidades e centros de pesquisa pudesse ser validado até chegar na parte de lote piloto mais rapidamente para iniciar testes clínicos. No entanto, como falta essa estrutura, muitos projetos promissores são engavetados.

O documento do GT-Vacinas conclui com a recomendação para que se mantenha um investimento estável e contínuo na pesquisa básica e na formação de recursos humanos em diversas áreas relacionadas à vacinologia, entre elas, a pesquisa de adjuvantes e o desenvolvimento de plataformas de vacinas (novos adjuvantes, vetores virais, vacinas de RNA, vesículas nanolipídicas, crispr/ cas9, nanotecnologias e outros sistemas de entregas), mecanismos imunológicos de defesa e imunogenicidade.

Também recomenda investimentos na inovação que possibilitem superar os testes pré-clínicos de segurança e alcançar etapas avançadas de ensaios clínicos. O GT sugere, por fim, a criação de um ou mais Centros Nacionais de Tecnologia em Vacinas (CNTV), que poderiam aproveitar o conhecimento gerado e acumulado até agora, estabelecendo a infraestrutura necessária para a integração de atividades de pesquisa e desenvolvimento aos estudos pré-clínicos e à produção de lotes pilotos.

“Espero que esse seja o grande legado da covid-19 para a área de vacinas no Brasil: criar as condições que nos permitam acabar com o vale da morte e criar uma infraestrutura”, conclui Gazzinelli.

O nó dos investimentos privados

Por que o Brasil não tem grandes indústrias privadas que façam a ponte entre a produção dos cientistas nas universidades e a sociedade? Por que empresas como Pfizer, AstraZeneca, Johnson & Johnson, embora tenham operações no País, não se envolvem com a produção de vacinas aqui como fazem nos EUA e na Europa?

Há visões distintas sobre a participação do setor privado na produção e distribuição de vacinas. Em seu livro “O Estado Empreendedor” (Portfolio Penguin, 2014), a economista Mariana Mazzucato afirma que quase todos os medicamentos realmente inovadores – as chamadas Novas Entidades Moleculares (NEM) – são criados em laboratórios financiados com dinheiro público. As empresas privadas se concentram mais nos medicamentos similares, no desenvolvimento e no marketing do negócio.

De fato, nos países sede das indústrias que saíram na frente na produção da vacina contra o coronavírus, o maior aporte nos projetos é do governo. Por exemplo, a Moderna recebeu mais de meio bilhão de dólares em recursos públicos do governo dos EUA para desenvolver seu imunizante. No Brasil, os projetos brasileiros mais adiantados receberam 3 a 5 milhões de reais (500 mil a um milhão de dólares).

Segundo o presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), Jorge Guimarães, a indústria farmacêutica brasileira se dedica aos genéricos e não se faz presente nos projetos inovadores que saem dos laboratórios das universidades. Segundo ele, nunca houve demanda das empresas do setor farmacêutico, nacionais ou estrangeiras, pelo desenvolvimento de vacinas, mesmo com a agência assumindo boa parte do risco. “As empresas brasileiras não estão interessadas, elas estão satisfeitas com o sexto maior mercado de medicamentos do mundo”, aponta Guimarães.

O cientista Ricardo Gazzinelli acha que, por um lado, não há planejamento e investimento do poder público na infraestrutura necessária à produção de vacinas que incentive a participação privada. Por outro, a produção e o consumo nacionais de vacinas humanas são totalmente estatais, não há muito espaço para o setor privado.

Já as vacinas veterinárias que, segundo ele, são de desenvolvimento, fabricação e distribuição relativamente fáceis e rápidos, contam com grandes investimentos privados e movimenta um mercado de quase R$ 100 milhões por ano. “É o produto que já deu mais royalties pra UFMG”, conta.

Gazzinelli analisa que, embora o PNI seja um programa muito bem sucedido comparado com o resto do mundo, poderia ser mais aberto ao setor privado. “As vacinas do Plano Nacional de Imunização são todas produzidas e compradas pelo governo.” Não há espaço para a venda de vacinas pelos privados e, ao mesmo tempo, as fábricas do setor farmacêutico humano não estão preparadas para produzir vacinas.

Nelson Mussolini, presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), garante que o interesse em fabricar e distribuir imunizantes nacionais é “total”. Alerta, porém, que é um tema de grande complexidade para a indústria brasileira, tanto do ponto de vista de infraestrutura, quanto pela falta de incentivos.

“São (produtos) extremamente difíceis de fazer, há questões de estabilidade, o circuito todo tem que ser fechado, não pode ter troca de ar, são câmaras fechadas, com sistema de ar extremamente filtrado, a água tem que ser especializada. É uma produção muito complicada”, justifica Mussolini.

Como participante do GT-Farma, um grupo que estuda ações para fomentar o setor farmacêutico e de medicamentos brasileiro e levar propostas para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o presidente do Sindusfarma demonstra pouca esperança de ampliação da capacidade de produção de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFA) das vacinas entre os privados a curto prazo.

Em compensação, garante, há estudos em andamento para adaptação de fábricas de vacinas veterinárias para produção de imunizantes humanos. “Temos duas ou três (fábricas de vacinas veterinárias) no País que poderiam ajudar, está sendo levantado pela Anvisa, pelo MCTI, pelo Ministério da Saúde e até por uma ação do Senado que aprovou uma lei nesse sentido.” Mas, segundo ele, não é algo para sair tão cedo.

A médio e longo prazos, porém, o cenário pode ser mais favorável à ampliação da presença da indústria na fabricação de imunizantes e outros fármacos voltados para o tratamento do coronavírus. Mussolini observa que o cenário traçado pelos cientistas para a covid-19 mostra que a vacinação terá que continuar pelos próximos anos, da mesma forma que a vacina da gripe. Nesse caso, segundo ele, o imunizante virará uma “commodity”, ou seja, um produto de qualidade e características padrão, com preço uniformemente definido pela oferta e procura no mercado internacional.

“Na hora que isso virar commodity, nós precisamos ter incentivos por parte do governo. Quando falo de incentivo, não falo que é dinheiro a fundo perdido, mas o governo precisa simplificar algumas regras, inclusive a tributária, para ser vantajoso fazer esses produtos no País. Nosso custo de produção é extremamente alto, não consegue comparar com o indiano e o chinês. Você precisa ter um forte mercado para não ter as fábricas ociosas”, conclui.

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Fonte: Janes Rocha - Jornal da Ciência

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