Calados e tímidos, os irmãos Maria Lúcia da Silva, de 78 anos, e Francisco Marrocos Sobrinho, de 73, fazem parte de uma significativa parte da história da educação brasileira. Eles estão entre os 300 alunos alfabetizados através do programa “As 40 horas de Angicos”, trazido pelo educador Paulo Freire para o Rio Grande do Norte, em 1963.
“A gente ajudava nossos pais na colheita do algodão e só depois dessas aulas fomos matriculados na escola. É bom pra gente votar né”, comenta Maria Lúcia em voz baixa. Os irmãos, que tinham 20 e 15 anos, respectivamente, não sabiam nem escrever o próprio nome quando começaram as aulas.
O reencontro de alguns alunos da época, ainda vivos, ocorreu 58 anos depois na mesma cidade de Angicos, neste domingo (19). A data foi escolhida em comemoração aos 100 anos de nascimento do pernambucano Paulo Freire, que acabou ganhando notoriedade em todo o mundo por sua metodologia de alfabetização de adultos, que leva em consideração o contexto social no qual o indivíduo está inserido. Até então, os adultos aprendiam a ler com a mesma metodologia aplicada na alfabetização de crianças.
Maria Eneide de Araújo, outra aluna do programa “As 40 horas de Angicos”, começou a frequentar as aulas aos 6 anos, quando ainda não sabia ler. Hoje, com 65 anos, conta como o contato com o universo de conhecimento foi determinante pra toda a família.
“Eu decidi lá que queria ser professora. Admirava bastante a professora, que chamávamos de monitora. Ela era muito dinâmica, se a pessoa faltasse à aula, ela ia buscar em casa. Começaria tudo de novo. Ler e escrever qualquer um pode ensinar, mas politizar a pessoa… pra mim foi muito importante, mudou a vida dos meus pais. Meu pai trabalhava no sítio de outras pessoas e só chegava à noite. Depois de conhecer o significado das palavras, decidiu que queria ser pedreiro e assim o fez. Depois ele se tornou comerciante, minha mãe fez curso de corte e costura e nunca faltou nada pra gente. Vi essa mesma evolução acontecer com outras pessoas do bairro”, avalia.
As comemorações pelos 100 anos de Paulo Freire começaram na Casa de Cultura Popular Palácio Professor Paulo Freire, onde os alunos e demais presentes puderam conferir uma exposição sobre a vida e presença de Paulo Freire no município.
“Deus levou muitos de nós, mas ainda tem uns 15 daquela época. Eu e meus companheiros estamos muito felizes e esse é um momento de gratidão por vocês se lembrarem de nós. Foi uma diferença maravilhosa em nossas vidas”, comentou o animado Paulo Alves de Souza, 79, conhecido como Paulo da Carroça, que tinha 22 anos quando foi alfabetizado.
“É muito importante estarmos nessa data aqui, vivos, resistindo nessa luta. Você não imagina quantas noites sem dormir por causa da falta de recursos. Paulo Freire é um legado para o mundo e você não imagina o quanto fico feliz em desenhar e fazer essa exposição. Pra mim ele está aqui, nessa sala, ao seu lado, dizendo o quanto está feliz! Viva Paulo Freire”, comentou Silvana Pachêco, diretora da Casa de Cultura de Angicos, que leva o nome de Paulo Freire.
Antes de chegar ao Rio Grande do Norte, Paulo Freire já havia iniciado um movimento na educação de Recife, durante a gestão do governador Miguel Arraes, quando foi fundado um grupo de estudos para formular uma nova proposta de alfabetização.
“Paulo Freire surgiu no mesmo momento em que outros movimentos começaram a acontecer no estado, como a campanha “De Pé no Chão Também de Aprende a Ler” e as Escolas Radiofônicas que depois viraram MEB (Movimento de Educação de Base), que pertencia à Arquidiocese de Natal. Ele fez uma síntese do que estava acontecendo. Paulo não tem um método, ele nunca disse que tinha. Ele dá uma visão diferente ao que deve ser a educação. Ele fala que o homem não deve ser um depósito, como uma educação bancária, mas que ele tem que ser um elemento transformador. Acho, inclusive, que a importância maior de Paulo Freire foi depois, porque logo em seguida veio o golpe militar e ele teve que se exilar. Na Suíça, durante o Conselho Mundial das Igrejas, é quando ele começa a organizar o sistema dele de alfabetização. É no Chile que Freire escreve a pedagogia do Oprimido, um dos 100 livros mais consultados no mundo na área da educação. Ele foi passando por vários países e aprimorando essa técnica, mostrando como é possível alfabetizar e esclarecer sobre o papel no mundo do ser humano. Soube que na Alemanha, o governo alfabetiza os imigrantes que chegam lá com a metodologia de Paulo Freire. Ele mostra que tudo que você faz é cultura, é importante e isso dá outro ânimo a quem está aprendendo”, explica a professora Marlúcia Menezes de Paiva, do Departamento de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A professora era uma das presentes no encontro realizado em Angicos neste domingo para comemorar os 100 anos de Paulo Freire com a reinauguração da Casa de Cultura da cidade que leva o nome do educador. A professora do Departamento de Pedagogia da UFRN também comentou sobre os ataques que a figura e obra de Paulo Freire tem sofrido no Brasil nos últimos tempos.
“Ele representa a liberdade, o fato de que você não é escravo de ninguém e que pode construir a sua vida sem precisar ser apadrinhado por A, B ou C e isso os poderosos não gostam, os ditadores, menos ainda!”, ironizou.
As tentativas de agredir a figura do educador e filósofo têm sido tantas, que a Justiça Federal do Rio de Janeiro proibiu, no último dia 17, o governo federal de praticar qualquer ato institucional que atente contra a dignidade de Paulo Freire. A liminar foi concedida em caráter de urgência em resposta a uma ação movida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos.
“É importante comemorarmos os 100 anos de nascimento de Paulo Freire como registro de memória dos desafios que ainda se colocam para o Brasil na área social e educacional de construirmos uma educação pela e para a esperança, de construirmos uma educação emancipadora. Que nós tenhamos um sistema educacional que, de fato, consiga minorar as desigualdades sociais mediada por uma educação libertadora. Ainda temos um número muito expressivo de crianças, jovens e adultos fora da escola ou em situação de analfabetismo, de tal maneira que o método de Paulo Freire e suas lições nos colocam um desafio de não perder a esperanças, de enfrentar as desigualdades por uma educação comprometida com a justiça social”, reflete Jefferson Fernandes, diretor do Centro de Educação da UFRN.
Este ano de 2021, pelo projeto aprovado na Assembleia Legislativa do RN e sancionado pela governadora Fátima Bezerra (PT), é considerado um ano “Freireano” na educação do Rio Grande do Norte.
“Paulo Freire é nossa grande referência de uma educação transformadora, libertadora. É a partir de seus ensinamentos que pudemos constatar a possibilidade real das pessoas mudarem de vida para melhor através da educação. Por isso, num momento como esse, de tanto negacionismo e ataques as conquistas da classe trabalhadora, à liberdade e à democracia, devemos saldar os ensinamentos de Paulo Freire, comemorar seu centenário e buscar fazer com que seus ensinamentos possam chegar a todos os recantos do nosso país e do nosso estado”, comentou o deputado estadual Francisco do PT, autor do projeto.
“O legado de Paulo Freire não é só para o Rio Grande do Norte ou para o Brasil, é para o mundo. Nós temos a obrigação de celebrar para que ela possa ecoar. Em 1964, quando foi preso pela Ditadura, ele fez com que sua prisão se tornasse um grande ato. Nesse centenário, momento em que ele é bastante hostilizado por negacionistas e conservadores, temos que fazer o mesmo que ele em 64, mostrar a importância da obra de Paulo Freire, do esperançar, do ter sonhos, da alfabetização e transformação das pessoas para transformar o mundo”, avalia Isolda Dantas, deputada estadual pelo PT.
O Secretário Estadual de Educação afirmou que tem tentado aplicar os princípios de Paulo Freire nas práticas da Secretaria.
“É bom que, cada vez mais, reforcemos os valores dos grandes brasileiros e Paulo Freire foi um deles, que lutou para que nosso povo tivesse liberdade, não vinda pelas armas, mas pela educação. Temos feito muito pouco por ele, um homem que vem sendo vilipendiado por alguns que nunca militaram na educação e não conhecem a educação mundial, nem brasileira. Paulo Freire é um homem reconhecido no mundo inteiro, tem mais de 40 títulos e é o terceiro autor mais lido na área de educação”, explicou Getúlio Marques.
“Nesse momento, mais que nunca, precisamos reforçar a memória de Paulo Freire. Estamos falando de uma luta contra o fascismo. O monumento fica para que todo o povo tenha conhecimento, pra que essa memória não seja esquecida e para que possamos nos manter resistentes, sabendo que temos uma metodologia que nos ajuda na emancipação e libertação do povo”, comentou a vereadora Divaneide Basílio, que também esteve presente nas comemorações de 100 anos de Paulo Freire.
Escultura simboliza presença de Paulo Freire em Angicos
Uma obra de 12 metros de altura e 7 metros de largura, foi instalada no terreno da Fazenda Serra Talhada, localizada no Km 180, da BR 304, em Angicos. A escultura gigantesca fica bem em frente ao também grandioso Pico do Cabugi, que pertence ao município.
A obra foi intitulada por Guaraci Gabriel, artista plástico que criou a escultura, como “A persistência da Memória”, que além de Paulo Freire, traz uma referência ao relógio derretido do pintor espanhol, Salvador Dalí. O monumento também traz várias letras que, quando juntas, parecem não ter qualquer significado. A imagem é uma outra simbologia a como uma pessoa analfabeta se sente ao olhar para palavras que não consegue decodificar.
“A execução foi em tempo recorde de 45 dias, mas a pesquisa já vinha sendo feita há cerca de 10 meses. Foram usadas cem toneladas de granito, que é uma alusão aos 100 anos de Paulo Freire, além de seis toneladas de ferro diluído. É um trabalho difícil de ser executado”, explicou Guaraci.
“Nós estamos falando de um dos pensadores mais lidos e falados no campo das ciências sociais. A homenagem é feita em Angicos porque foi aqui onde tudo começou em 1963, na gestão do então governador Aluízio Alves. Foi aqui que Paulo Freire plantou as sementes de seu método de alfabetização de adultos que ficou internacionalmente conhecido como as 40 horas de Angicos. Em 40 horas ele não só ensinava o povo pobre não apenas a ler e escrever, mas a lutar por seus direitos. Esse foi o crime que Paulo Freire cometeu! Veio a ditadura militar e ele teve que ser exilado. A experiência em Angicos serviria de base para o Plano Nacional de Alfabetização que Paulo Freire iria coordenar no governo do então presidente João Goulart. No momento em que, lamentavelmente, o governo federal ignora Paulo Freire, um homem com essa biografia festejada pelo mundo inteiro, não só o ignora, mas tenta desqualificar a contribuição que ele deu à luta e defesa da educação como direito da cidadania”, contou Fátima Bezerra, durante a inauguração do monumento.
Durante a inauguração do monumento , também foi lembrado que neste ano de 2021, o Governo do estado lançou os Institutos Estaduais de Educação, que contarão com um investimento de R$ 400 milhões.
“A melhor forma de homenagear Paulo Freire é reafirmar nosso compromisso em defesa da educação pública de qualidade, por isso, em 2021 anunciamos o maior investimento já realizado na educação básica no Rio Grande do Norte. Serão R$ 400 milhões para criação dos Institutos Estaduais de Educação Profissional, Tecnologia e Inovação, modernização tecnológica das escolas, capacitação e formação dos profissionais da educação e uma ação que tem muita relação com Paulo Freire, que é incrementar o programa de ações de superação do analfabetismo”, concluiu a governadora.
Fonte: Saiba Mais