No século XIX, o cientista francês Louis Pasteur afirmou não haver uma categoria de ciências à qual seja possível chamar de “ciência aplicada”. Existe a ciência, disse Pasteur, e a aplicação desta ciência, que estão unidas de forma indissociável, como um fruto e a árvore que o carrega.
Em uma realidade na qual a produção científica enfrenta a pressão para gerar produtos e inovações imediatas, muitos jovens pesquisadores se veem cada vez mais afastados daquilo que se compreende como ciência básica: as longas horas no laboratório avaliando modelos, aspectos fisiológicos, moleculares, coletando dados que dificilmente o farão ser reconhecido ao final do processo como o novo Steve Jobs – mas sem os quais a ciência é incapaz de avançar.
Apesar desse cenário, amplificado pelos cortes em investimentos nas áreas de ciência e tecnologia que impactam principalmente as pesquisas que não apresentam aplicações imediatas, a pesquisa básica resiste.
Na região do Nordeste brasileiro, por exemplo, grupos de pesquisadores têm se destacado pelos estudos sobre a memória. No Memory Research Lab do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estão dois dos cinco cientistas mais produtivos do bloco econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS) de acordo com o AD Scientific Index: o neurocientista argentino Martín Cammarota, e a bioquímica gaúcha Janine Inez Rossato que, desde 2016, é também professora adjunta no Departamento de Fisiologia da UFRN.
Rossato atua na área de neurociência com ênfase em aprendizado e memória. Suas pesquisas mais recentes estão focadas na investigação de como as experiências afetam a formação e a manutenção das memórias declarativas de reconhecimento – onde reside nossa capacidade de estabelecer conexões com o mundo ao nosso redor.
No caso da doença de Alzheimer, por exemplo, as primeiras memórias perdidas são as de reconhecimento, que são aquelas estudadas pelas pesquisadoras. Compreender os processos do cérebro quando isso acontece em roedores é o primeiro passo para, no futuro, poder chegar às pesquisas clínicas com seres humanos.
Ao longo dos próximos quatro sábados, a agência Saiba Mais publica, em parceria com o Instituto Santos Dumont, uma série de entrevistas com cientistas do ISD sobre pesquisas desenvolvidas no Rio Grande do Norte e ciência em geral.
A primeira reportagem é com a pesquisadora Janine Inez Rossato, que fala sobre a importância da pesquisa básica para o avanço da ciência e seus mais recentes estudos no campo da memória.
Confira a entrevista:
Como funciona o trabalho de pesquisa que é desenvolvido por vocês no Memory Research Lab?
Janine Inez Rossato: A gente trabalha exclusivamente com pesquisa básica. É muito difícil para a população entender a importância desse tipo de pesquisa, porque ela não tem uma aplicação imediata. A gente precisa começar com essa conscientização, porque a pesquisa básica é tão importante quanto a pesquisa aplicada, já que é a partir dela que podemos desenvolver esses usos.
É um trabalho árduo, a gente se dedica muito, porque se a gente não entender os processos fisiológicos, de funcionamento, não temos como identificar como os processos patológicos se desenvolvem e chegar à pesquisa clínica de fato. Esse, no entanto, é um processo lento: ao longo deste ano vão sair algumas publicações que estão relacionadas ao que foi feito nos últimos dois, três anos. Como você pode ver, não é um trabalho rápido, ele demora. Nossas publicações têm alto índice de relevância e impacto, então é um trabalho que se faz de forma lenta, e o imediatismo que se coloca muitas vezes sobre a produção científica não compreende muito bem esses processos. São cerca de dois anos para desenvolver cada um desses trabalhos.
O tema de sua palestra no VII Simpósio de Neuroengenharia (evento promovido pelo Instituto Santos Dumont em Macaíba, RN) trata das proteínas-chave envolvidas no processamento da memória de reconhecimento de objetos. Qual a importância de compreender esses processos?
Nosso trabalho está muito relacionado a entender os processos fisiológicos. Quando a gente fala do reconhecimento de objetos em roedores, isso é de extrema relevância, porque as memórias de reconhecimento estão muito relacionadas ao cotidiano. Lembrar do que a gente sabe, do que a gente conhece, reconhecer aquilo como familiar e, a partir dessa familiaridade, decidir se a gente pode ou não desempenhar e realizar determinadas tarefas, por exemplo.
Isso é bem importante principalmente quando falamos em doenças neurodegenerativas, como é o caso da doença de Alzheimer, onde as primeiras memórias que são perdidas são as de reconhecimento. A pessoa perde a capacidade de reconhecer o que é familiar a ela. Então, entender os mecanismos fisiológicos a nível básico pode nos ajudar a desenvolver, no futuro, fármacos ou terapias que poderão ser utilizadas no tratamento dessas condições.
“Nossas publicações têm alto índice de relevância e impacto, então é um trabalho que se faz de forma lenta, e o imediatismo que se coloca muitas vezes sobre a produção científica não compreende muito bem esses processos”.
Apesar de você ter mencionado que os processos que envolvem a produção científica a um nível básico serem mais lentos, seu nome figura na lista como uma das pesquisadoras com produção de maior impacto nos BRICS. No seu caso, inclusive, como a pesquisadora mais jovem da UFRN dentre todos os citados. Como foi receber esse reconhecimento?
Foi uma surpresa muito agradável estar na lista dos BRICS. É muito relevante esse reconhecimento, principalmente quando nosso trabalho, mesmo na Universidade, às vezes não é tão reconhecido. Estar nessa lista faz com que o trabalho do laboratório que a gente vem desenvolvendo tenha a relevância que merece e seja mostrado da maneira que merece, porque é realmente um trabalho e uma dedicação bem grande. Mesmo durante a pandemia, não paramos muito, apesar de ter sido bem complicado. Nosso trabalho envolve tanto a parte intelectual como prática e, apesar das atividades práticas terem sido muito reduzidas, elas continuaram acontecendo. Estar nessa lista é mais um reconhecimento de toda essa dedicação.
“As memórias de reconhecimento estão muito relacionadas ao cotidiano. Lembrar do que a gente sabe, do que a gente conhece, reconhecer aquilo como familiar e, a partir dessa familiaridade, decidir se a gente pode ou não desempenhar e realizar determinadas tarefas, por exemplo”.
Quem é Janine Inez Rossato
Janine Inez Rossato é natural de Nova Palma (RS). Ela é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde também fez o mestrado em Bioquímica Toxicológica. É doutora em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e fez pós-doutorado na Universidade de Edimburgo. Desde 2016, é professora adjunta do Departamento de Fisiologia e Comportamento da UFRN. Além de ser uma das cientistas de maior impacto dos BRICS de acordo com a AD Scientific, Janine já recebeu também a Honra ao Mérito da Federação das Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), em 2006, e o prêmio do Programa Para Mulheres na Ciência, concedido pela L’Óreal e a Academia Brasileira de Ciências.
Fonte: Saiba Mais