Apesar da falta de recursos para terminar 3,5 mil escolas em construção há anos, o Ministério da Educação (MEC) autorizou a construção de outras 2 mil unidades. Bom para mostrar no palanque de campanha, o projeto não tem recursos previstos no orçamento, o que deve aumentar o estoque de escolas não entregues pelo governo e esqueletos de obras inacabadas. Mesmo assim, os colégios já são anunciados por deputados e senadores aos seus eleitores. O esquema de “escolas fake” tem como base o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), controlado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, por meio de um apadrinhado. O fundo precisaria ter R$ 5,9 bilhões para tocar todas as novas escolas contratadas. Com o orçamento atual, levaria 51 anos para isso. Ao priorizar obras novas em detrimento das iniciadas, o governo fere leis orçamentárias.
Em publicação em seu Instagram, o deputado Zé Mário (MDB-GO) diz aos seus seguidores que conseguiu R$ 6,93 milhões para construir uma escola rural no interior do município de Morrinhos, em Goiás. “Recurso viabilizado junto ao FNDE”, escreveu, com uma foto sua em que aparece sorridente. Na verdade, o governo liberou apenas R$ 30 mil e não há previsão orçamentária de que o restante do valor sairá. “Eu não tenho como iniciar uma obra desse valor”, disse o prefeito Joaquim Guilherme (PSDB). “Com esse pequeno empenho que foi feito aí?” Procurado, o deputado Zé Mário alegou que a publicação foi erro de sua assessoria.
No Paraná, o prefeito do município de Ubiratã, Fábio D’Alécio (Cidadania), recebeu autorização para construção de uma escola de R$ 3,2 milhões. Até agora, foram empenhados, isto é, reservados, R$ 5 mil. “Do ponto de vista global, realmente as contas parecem que não estão casando”, afirmou o prefeito ao Estadão. “Dá a impressão de que é um compromisso só político e não técnico. A expectativa minha é a de que o convênio tenha começo, meio e fim. Agora, não tenho como avaliar se isso vai, de fato, acontecer.”
Correligionário de Ciro Nogueira, o deputado Vicentinho Junior (Progressistas-TO) disse aos seus eleitores nas redes sociais que conseguiu R$ 209 milhões para construção de 25 escolas, 12 creches e três quadras poliesportivas para 38 cidades do seu Estado. Deu inúmeras entrevistas sobre a suposta conquista. Os empenhos (reserva) que ele obteve, contudo, foram de R$ 5,4 milhões. Valor equivalente a 2,6% do total. Com essa cifra, não é possível construir uma única escola. É mais uma promessa falsa. O volume de recursos ultrapassa tudo o que o FNDE tem para investir este ano de recursos próprios.
Os números do FNDE expõem como funciona o esquema das “escolas fake”. Faltando oito meses para o fim do governo, foram liberados 3,8% dos recursos previstos para a construção das 2 mil escolas e creches, sendo que 560 obras receberam apenas 1% dos valores empenhados.
Neste ano, o fundo tem R$ 114 milhões de recursos próprios. Seriam necessários R$ 5,9 bilhões para as 2 mil novas escolas que se comprometeu a fazer. Além disso, o governo precisaria de mais R$ 1,7 bilhão para concluir as 3,5 mil obras em andamento no País.
Na última quinta-feira, o presidente do FNDE, Marcelo Ponte, apadrinhado de Ciro Nogueira, disse na Comissão de Educação do Senado que a prioridade do órgão é terminar obras inacabadas. E omitiu os novos termos de compromisso. “A prioridade é executar obra inacabada?”, perguntou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). “Obra inacabada”, respondeu Pontes.
As prioridades para realização de novos empreendimentos atendem a critérios políticos, com a necessidade de aprovação de Ciro Nogueira. Como o Estadão tem mostrado, o fluxo de verbas do FNDE prioriza redutos do partido do ministro, o Progressistas.
O advogado e professor Heleno Taveira Torres, titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo, disse que essa previsão, além da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), está presente também na Constituição Federal. “Os empenhos picados, sem créditos orçamentários, fere a Lei 4.320. É algo muito grave.”
A professora Élida Graziane Pinto, da FGV, afirmou que “alocar recursos sabidamente insuficientes para obras novas, quando há um saldo significativo de obras paralisadas, ofende a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias”. “É uma alocação gerencialmente irracional e fiscalmente irresponsável que apenas atende ao curto prazo eleitoral dos que desejam tão somente inaugurar placas”, disse Élida.
O esquema de distribuição a conta-gotas de recursos para novas obras soma-se a outros casos de captura da área da educação no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Na gestão do então ministro Milton Ribeiro pastores circulavam com desenvoltura no MEC, intermediavam recursos e cobravam propina, como relataram prefeitos ao Estadão. As cobranças eram feitas até em ouro. Ribeiro deixou o cargo.
No FNDE, órgão que concentra boa parte das verbas de investimento da área, Ciro Nogueira exerce influência política. O presidente do fundo, Marcelo Ponte, foi seu assessor. Outro diretor do órgão, Garigham Amarante, chegou ao cargo apadrinhado pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto. Os dois patrocinaram licitação para compra de ônibus escolares com preços inflados. Após o Estadão revelar o risco de sobrepreço no leilão, o governo ajustou a cotação dos veículos. O certame está embargado pelo Tribunal de Contas da União. Procurado, o FNDE não quis comentar.
‘É muito dinheiro público aqui estragando’, diz prefeito
O prefeito de Inhumas (GO), Dr. João Antônio (PSDB), fez peregrinações ao Ministério da Educação, em Brasília, para finalizar obras de uma escola e duas creches. Em março do ano passado, esteve num dos encontros com o então ministro da Educação, Milton Ribeiro, mediados pelos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, que intermediavam um esquema de propina na pasta, segundo prefeitos relataram ao Estadão.
No auditório, Dr. João pediu a palavra. Reclamou da falta de repasses pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). “A gente olha aquelas obras com a tristeza maior de ver o dinheiro público, dinheiro nosso, nosso imposto, que nós pagamos, detonado, sendo jogado pelo lixo”, disse o prefeito.
Partiu do deputado Professor Alcides (PL-GO) a sugestão insólita: começar uma obra do zero. O Estadão apurou que prefeitos que tentam convencer parlamentares a destinar recursos para a conclusão de obras inacabadas são aconselhados pelos congressistas a buscar uma nova para, assim, se apresentarem como autores do projeto.
Na última quarta-feira, a reportagem acompanhou o prefeito numa visita às escolas inacabadas. No local, o mato cresce e urubus fazem ninhos. “Eu pedi a todos os deputados, solicitei a senadores, procurei o próprio ministro (Milton Ribeiro). Nós batemos na porta, tentando liberar o mais rápido possível. Não foi possível”, afirmou Dr. João. “É muito dinheiro público aqui estragando, deteriorando.”
O Estadão perguntou ao deputado por que ele não ajudaria na conclusão das obras antigas, em vez de conseguir um termo de compromisso para uma nova escola. O parlamentar disse desconhecer a falta de recursos para conclusão das obras antigas. “Aquilo que ele tem procurado, eu tenho procurado atender. Eu não sei adivinhar, né?”, respondeu.
Em Uruçuca, na Bahia, a nova escola está orçada em R$ 18,58 milhões – dos quais R$ 13,1 milhões já foram pagos. A obra está 85% pronta, mas a demora para a conclusão dos trabalhos frustra os moradores, pois o esforço da comunidade pela construção se arrasta desde 2012.
Pelo projeto, a escola atenderá cerca de 2 mil crianças na comunidade de Serra Grande, um distrito do município. A arquiteta do projeto, Beatriz Goulart, disse que a unidade foge do padrão tradicional do FNDE. “As pessoas da comunidade decidiram que queriam fazer uma escola diferente e, na época, o FNDE achou interessante construir lá a primeira escola sustentável financiada por eles”, disse ela. “A obra começou, e a gente achou que era um milagre. Mas aí começaram a atrasar muito os pagamentos e, desde julho de 2021, eles não pagam mais nada.”
Beatriz relatou que, na comunidade, a impressão é de que MEC e FNDE pararam de trabalhar. “As pessoas com quem conversávamos lá sumiram, simplesmente não respondem mais”, afirmou a arquiteta. Agora a comunidade tenta concluir o trabalho com dinheiro privado e da prefeitura.
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que transferências de verbas federais devem priorizar recursos para concluir obras iniciadas, e não para novos projetos, com vistas a promover a funcionalidade da infraestrutura já instalada.
Foto e texto: Estadão