Desde a programação da ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’, em 1948, houve grandes avanços, mas, especialmente no Brasil, ainda existem muitos problemas sociais que ferem condições básicas do ser humano. A afirmação é dos participantes do sétimo seminário da série “Projeto para um Brasil Novo”, realizado na última quarta-feira (04). O evento foi transmitido pelo canal da SBPC no YouTube.
Coordenado por Luiz Eduardo Soares, professor visitante titular no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o evento reuniu pesquisadores renomados do País para debater Direitos Humanos. A discussão contou com a participação de Andréa Zhouri, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Denise Dourado Dora, diretora-executiva da organização de defesa dos direitos humanos Artigo 19 (Article 19), e Matilde Ribeiro, professora adjunta na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Na abertura do evento, Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, pontuou que os direitos humanos são uma conquista da democracia moderna, que remonta à Revolução Francesa, de 1789, e se solidifica com a ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’, assinada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948. “Estabeleceu-se, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, religião ou qualquer outra condição. Desde então, surgiram outras declarações adicionais, dentre elas, os direitos da criança e do adolescente e o combate ao preconceito tanto de gênero quanto étnico”, comentou.
Em convergência com as palestrantes, Soares, que coordenou o evento, ressaltou que os direitos humanos, que haviam alcançado avanços, no Brasil, sofreram forte retrocesso no atual governo e estão sob ataque, assim como a democracia. “Essa realidade dramática tem sido marcada pela expansão do ódio, do racismo, das desigualdades e pela destruição ambiental. Os direitos, as conquistas sociais e os espaços democráticos se degradaram e o que nos resta está em risco. Devemos a resistência aos esforços de movimentos, ativistas, articulações e instituições que muitas vezes respiram por aparelhos, mas são reanimados pela esperança nas transformações que o futuro sempre reserva”, disse.
Nesse sentido, Denise Dora, da Artigo 19, afirmou que existem debates pulsantes no Brasil que merecem atenção: o racismo estrutural (que mata jovens negros), a demarcação de terras indígenas e o respeito pelos povos tradicionais, e a igualdade de gênero. Para ela, mesmo o País contando com diversos movimentos que tratam dos direitos humanos, os problemas não serão resolvidos, enquanto as instituições do Estado não se dispuserem a adotar políticas públicas transformadoras com alcance estrutural. “Não tem como reconstruir o Brasil sem tratar desses assuntos seriamente. Temos de repensar as políticas de segurança pública, as leis de igualdade racial, por exemplo. Infelizmente existe um princípio de não empatia no Brasil que impede que se fundamentem ou criem fundações sólidas de proteção aos direitos humanos para todas as pessoas”, comentou.
Ela também criticou o ódio disseminado sob a justificativa da liberdade de expressão, que deve ser combatido. “O advento das grandes plataformas permite que, por um lado, as pessoas tenham a liberdade de falar, mas de outro se fortaleçam grupos que, no anonimato, passam a usar esse ambiente digital amplificado para organizar, produzir e repercutir discurso de ódio e perseguição. Então, a gente tem um fenômeno de combate às liberdades, que usa o espaço da liberdade de expressão para disseminar o neofascismo, aproveitando-se dos padrões de desigualdades estruturais em um país como o Brasil para combater a noção básica de direitos humanos. Que o novo governo observe essas ideias de respeito, empatia, igualdade, equidade, defesa de liberdades e que isso possa produzir políticas públicas.”
Para Andréa Zhouri, da UFMG, um dos maiores desafios para a construção de um novo Brasil, com uma sociedade mais justa, humana, social e ambientalmente equilibrada, está em identificar e reverter o desmanche de leis e as práticas que levaram ao aprofundamento das desigualdades, à devastação ambiental e ao recrudescimento da violência. “O desmonte ambiental provocado pelo atual governo tem provocado um retrocesso no campo dos direitos de povos indígenas e tradicionais. São políticas com um caráter ideológico em torno de uma proposta anti-indígena, antiambiental e anticiência, apoiadas por setores empresariais, dentre eles o agronegócio e a mineração”, afirmou. É o caso da transferência de demarcações de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, assim que o atual presidente tomou posse. Se os projetos de desenvolvimento têm sido, ao longo das décadas, assimilacionistas, isto é, têm sistematicamente ignorado a existência, os territórios e os direitos dos povos tradicionais e das sociedades originárias, o programa neoliberal em curso vem agravando radicalmente os males provocados pelas dinâmicas anteriores. Se o futuro governo tiver compromisso com os direitos humanos, terá de renunciar à atual política anti-popular e, além disso, superar a tradição desenvolvimentista, fundada no assimilacionismo.
Cotas
Ao falar da luta da população negra, Matilde Ribeiro destacou os avanços e conquistas a partir da Constituição de 1988, como a criminalização do racismo, e defendeu as cotas na perspectiva dos direitos. Mas pontuou, entretanto, que é preciso continuar avançando nas políticas afirmativas. Para ela, vai demorar até que as políticas públicas implantadas nos últimos anos comecem a dar resultados concretos e diminuam, assim, a diferença econômica e social entre as populações branca e negra do País.
Segundo Ribeiro, a Lei de Cotas, que abriu as portas das universidades federais e estaduais para negros, indígenas e estudantes de escola pública, continua sendo alvo de disputa. “Muitos dos que são contra afirmam que elas trazem privilégios e ferem o mérito. Mas é importante ressaltar que antes delas existirem, o acesso às universidades havia sido negado aos negros, indígenas e pobres em geral, e que essa política mudou a fotografia das universidades”, destacou.
“Hoje todas as universidades federais aplicam a política de cotas por um caminho ou outro. Sabemos que as cotas não são a salvação da lavoura e sim medida paliativa diante de um quadro de exclusão histórica. Temos de trabalhar, em termos de direitos humanos, para que a educação seja pública, gratuita e de qualidade para todos, como manda a Constituição”, afirmou.
Para ela, a questão racial no Brasil passa pelo mito do paraíso racial, o qual sobrevive no imaginário da população. “Quebrar esse mito é importante para se atacar a desigualdade racial e diminuir a diferença existente. O conceito de racismo estrutural e institucional é muito importante quando se trata de justificar a luta por direitos e cidadania, mas ele está longe de ser entendido pela maioria da população”, comentou.
“No Brasil é impossível compreendermos o sentido de nação e de uma construção de humanidade se não considerarmos o que foi a escravidão, que durou quase 400 anos, e também o que aconteceu depois. O racismo existe, mas onde estão os racistas? Não aparece ninguém”, disse, sublinhando que a abolição da escravatura não ocorreu de fato.
A docente da Unilab ressaltou ainda que o tema conta com dois instrumentos que somam forças à Declaração Universal, sendo eles o ‘Estatuto da Igualdade Racial’, aprovado em 2010, e a ratificação, em 2021, da ‘Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas correlatas de Intolerância’. “Estes instrumentos podem e devem fazer parte dos debates, para fortalecer o tema e tornar possíveis os avanços democráticos”, finalizou.
História
Denise Dora, da Artigo19, traçou uma linha histórica do surgimento da luta por direitos humanos. Segundo contou, os movimentos abolicionistas, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, que acabou causando mudanças também nos países do Sul, e o movimento sufragista deram o pontapé inicial. “No pós-segunda guerra mundial, a Declaração Universal surgiu da ideia, conduzida por países dominantes, de que era possível construir um pacto universal. O documento deveria ser uma convenção global, mas o início sofreu resistência para que não fosse uma lei, e sim uma declaração de princípios e vontades. Tanto que ela é enxuta, com apenas 30 artigos, mas foi o consenso possível em 1948 entre as forças políticas que estavam ali”, explicou.
“Ironicamente, muitos dos países que desenharam essa convenção mantinham colônias, como o Reino Unido, com regimes muito autocráticos e hierarquizados. E isso criou uma certa contradição sobre a ideia da humanidade que declara os princípios de não discriminação e igualdade e respeito, que é o coração dos direitos humanos. Essa contradição funcionou como motor para o surgimento de movimentos nos anos 1950 e 1960, dentre eles os movimentos anticoloniais na África, os movimentos feministas e o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos”, disse.
Segundo a diretora-executiva da Artigo19, a institucionalidade dos direitos humanos no Brasil chegou tardiamente, depois da Constituição Federal de 1988. “Quando as Nações Unidas começaram a aprovar seus tratados e convenções, o Brasil vivia uma ditadura militar. Obviamente, não incorporou as decisões em seus princípios, embora nunca tenha votado contra. Ou votava a favor, ou se isentava. Mas, no cenário internacional, o Brasil nunca tinha sido, até o atual governo, tão contrário a princípios de não discriminação e igualdade”, afirmou.
No final, as três palestrantes destacaram a importância dos movimentos feministas e das mulheres como lideranças dos movimentos indígenas, negros e de populações tradicionais nas lutas por direitos humanos hoje no Brasil.
Seminário
O evento é parte de 12 seminários temáticos que a SBPC está realizando para tratar de temas relevantes que contribuam para o desenvolvimento do País. Entre os assuntos a serem abordados estão “Segurança pública”, “Mudanças climáticas”, “Questão indígena”, “Diversidade de gênero e raça” e “Cultura”. O primeiro seminário debateu “Ciência, Tecnologia e Inovação”, o segundo, “Educação básica”, o terceiro, “Educação superior”, o quarto, “Pós-graduação”; o quinto tratou do tema “Saúde” e o sexto discutiu questões de “Meio Ambiente”.
Segundo Fernanda Sobral, vice-presidente da SBPC, o objetivo dos eventos é engajar a comunidade científica a propor políticas públicas para os próximos anos. “A ideia é que esses eventos abordem temas relevantes visando à elaboração de um documento com diretrizes e propostas gerais de políticas que será entregue aos candidatos ao Legislativo e ao Executivo da próxima eleição, durante a 74ª Reunião Anual da SBPC, a ser realizada neste ano na UnB (Universidade de Brasília)”, explicou. “A ideia é não ficarmos apenas na batalha do presente, mas pensarmos um futuro melhor para nosso país“, disse.
Assista aqui ao seminário na íntegra.
Fonte: Vivian Costa – Jornal da Ciência