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Publicado em 24 de maio de 2022 às 09h00min
Tag(s): Educação básica
Na última semana, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 3179/12, que regulariza a prática de educação domiciliar no Brasil, também conhecido como homeschooling. Enquanto o PL aguarda votação no plenário do Senado Federal, professores, educadores e demais cientistas já se manifestaram contrários à sua aprovação. Para os especialistas, além da educação domiciliar não conseguir substituir a estrutura de ensino das escolas, ela retira o direito à socialização de crianças e jovens.
“O ensino domiciliar quebra as possibilidades de que crianças e adolescentes tenham direito à proteção contra a violência, o direito a um processo educacional que os conduzam a uma vida plena e elimina a compreensão de que uma das características do processo educativo é a socialização, a construção de uma maneira de viver em sociedade e lidar com seus conflitos e com suas dificuldades”, explica Marta Feijó Barroso, coordenadora do Comissão de Educação Básica da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Feijó complementa que a educação domiciliar fere a compreensão de que a educação é um direito expresso na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. “Não há uma vida em sociedade minimamente harmoniosa que exclua acordos que envolvem o respeito à posição do outro, a capacidade de escuta e conciliação e a aceitação de que há diversidade de opiniões. A escola tem seu papel: desenvolvimento de aprendizagens de saberes, de procedimentos, de atitudes. A família não consegue, no mundo atual, substituí-la. Tirar crianças da escola só tem sentido se acredita-se que a ‘escola tem partido.’”
Professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMG), Alexandra Ayach Anache aponta uma série de problemáticas na aplicação da educação domiciliar, como o aprofundamento das desigualdades sociais, uma vez que grande parte da população de alunos em idade escolar têm baixa renda, a diminuição de espaços escolares institucionais e de profissionais qualificados, a descriminalização das famílias que não matricularem os seus filhos nas escolas e a desqualificação da ciência e, sobretudo, a negação da pedagogia e de seus fundamentos como ciência.
Anache ainda destaca o papel do Estado nesse cenário. “A falta de investimento na educação contribuiu para o sucateamento das escolas e da carreira docente, impactando a qualidade do ensino. Isso não será superado com a proposta de educação domiciliar, uma vez que a política econômica de austeridade fiscal e a ausência de coordenação federal inviabilizaram a execução do Plano Nacional de Educação”, pontua.
Melhoria na qualidade do ensino é demanda urgente
E quais são as reais necessidades da educação básica no País? Para a professora Marta Feijó Barroso, de forma geral, o debate deveria girar em torno da melhoria da qualidade da educação. Isso envolve investimentos nas estruturas físicas das escolas públicas, em salários dignos para professores e servidores com carreira e evolução de serviços que garantam merendas escolares de qualidade, transporte escolar, apoio social, entre outros aspectos.
“O Ministério da Educação precisa garantir o regime de colaboração entre os governos federal, estaduais e municipais para um adequado financiamento da educação e para promoção de ações que transformem a educação num assunto a ser discutido por todos, na comunidade no entorno da escola, no município, no estado. Isso poderia proporcionar a construção coletiva de um projeto educacional solidário, equitativo, que respeite os direitos das crianças e adolescentes”, pontua.
Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Roseli de Deus Lopes destaca o papel da tecnologia no processo de evolução da educação no País. Apesar das ferramentas digitais terem ganhado força na condução do ensino durante a pandemia, e impulsionado o debate sobre homeschooling, elas não substituem a estrutura educacional já existente.
“Quando a gente fala em educação de qualidade para todos, a gente pensa na educação dessas crianças e jovens e como podemos trabalhar a formação de professores. Existe muito cuidado em soluções que envolvem tecnologias, porque elas são necessárias, mas não substituem as atividades presenciais e todas as ações de atenção que são necessárias, principalmente com crianças menores. A gente pode sim ter alguns complementos que são colocados com tecnologias, e a gente precisa investir nessa área também, inclusive dando conectividade para professores e alunos para que eles possam desenvolver atividades dentro e fora das escolas.”
Presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro ressalta o papel das instituições de ensino enquanto formadoras do desenvolvimento humano. “A educação tem algo que é praticado há milhares de anos: a escola. E apesar de possuir falhas e insuficiências, a escola é a melhor forma de você socializar uma pessoa. Educar não é simplesmente abarrotar a cabeça de uma pessoa com conteúdos. Educar é ensinar uma pessoa a sair de casa, a se relacionar com quem não é do seu mundo restrito e pequeno. Pela educação, você tem que aprender a lidar com adultos que não são seus pais, e isso acontece com os professores e demais funcionários das escolas, e a lidar com crianças que não são suas irmãs, que são os colegas de classe. Se você deixar as crianças em casa, elas não vão ter a possibilidade de se abrir para o mundo. E educar é isso, abrir as cabeças para o mundo, é mostrar que o mundo não se esgota no seu bairro, na sua casa, na sua família, na sua classe social, na sua religião. É mostrar que o mundo é muito mais amplo”, conclui.
No dia 19 de maio, a SBPC enviou uma carta a deputados solicitando que o Congresso rejeitasse o projeto de lei que autoriza a educação domiciliar. O documento foi endossado por mais de 50 sociedades científicas de todo o País. Confira o documento neste link.
Fonte: Rafael Revadam – Jornal da Ciência