Como o Brasil foi arrebatado por uma epidemia de fake news e desinformação durante a pandemia

Publicado em 06 de setembro de 2022 às 14h34min

Tag(s): Pandemia de coronavírus



Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press

 

A pandemia da Covid-19 calhou de acontecer em um momento crítico da história política brasileira. Veio pouco mais de dois anos após o ruidoso impeachment da presidente Dilma Rousseff. Àquela altura, obviamente, não se sabia o que estava por vir – e as aventuras de Michel Temer e Joesley Batista no Palácio do Planalto jamais poderiam prenunciar algo tão grave. Tudo estava fora de lugar, inclusive a economia e a saúde pública. A pós-verdade foi alimentada a níveis inimagináveis até a eleição seguinte, em 2018, decidida na base da emoção. Em um ambiente de normalidade, sabe-se que o atual presidente jamais seria eleito – e que outro em seu lugar jamais teria tomado as decisões que tomou diante de um vírus letal e desconhecido. 

A propósito, quem não se lembra dos episódios lamentáveis protagonizados pelo presidente em momentos-chave da pandemia? Dia sim, outro também, Jair Bolsonaro minimizava a crise, defendia remédios ineficazes, questionava medidas sanitárias, advogava contra vacinas, debochando dos infectados e fazendo declarações anticientíficas replicadas por milhões de seguidores negacionistas na internet.

Junto ao seu séquito, o presidente criou cascatas de fake news e tornou difícil encontrar informações verdadeiras e confiáveis sobre a Covid-19, que aquela altura sufocava milhões em casa e nos hospitais, por falta de medidas adequadas e simples como usar máscara, lavar as mãos e manter distância. Assim, multidões passaram a chegar cada vez mais desinformadas e confusas aos serviços médicos. Quem sofreu as consequências, além da própria população, foram os trabalhadores da saúde. 

Em ambiente infodêmico, as notícias falsas prevalecem sobre as verdadeiras, pois apelam às emoções e oferecem leniência em momentos de incerteza

Os efeitos dessa tragédia já podem ser mensurados. Minha pesquisa ‘Infodemia relacionada à COVID-19 e seus impactos para trabalhadores da saúde no Brasil’, aponta que 91% dos profissionais que atuaram na linha de frente declaram que as fake news foram um obstáculo no combate ao novo coronavírus; 76,1% contam ter atendido pacientes que expressaram crença em notícias falsas sobre a doença. Apenas 29,3% concordam que os posicionamentos das autoridades sobre a pandemia foram consistentes e esclarecedores. A pesquisa teve a participação de 15.132 profissionais de saúde que atuaram na linha de frente do combate à COVID-19 em 2.200 cidades brasileiras.

O termo infodemia foi cunhado pelo pesquisador Gunther Eysenbach, em 2002, para designar o aumento exponencial de informações, precisas ou não, sobre determinado assunto de saúde em um curto espaço de tempo, provocado por um evento específico, que torna difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando isso é necessário para proteger a si e à coletividade. 

Em ambiente infodêmico, as notícias falsas prevalecem sobre as verdadeiras, pois apelam às emoções e oferecem leniência em momentos de incerteza. Principalmente, se forem estimuladas e amplificadas por celebridades e autoridades oficiais. Existem mecanismos psicológicos simplórios, que entendem a desinformação como benefício. Acreditar em notícias falsas pode ajudar a minimizar ameaças, relativizar doenças e ser útil para conter a ansiedade, o medo e a raiva. Apontar culpados e bodes expiatórios para justificar crises promove uma sensação ilusória de bem-estar e de não envolvimento.


Um fator de enganação é o uso de jargões científicos na estrutura da notícia falsa. Estudo realizado por meio do app ‘Eu fiscalizo’, entre 17 de março e 10 de abril de 2020, identificou que 71,4% das notícias falsas sobre receitas caseiras e curas milagrosas para COVID-19 traziam o nome da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para legitimar a informação. O nome da instituição é usado de maneira ilegal e criminosa por criadores de conteúdo falso. A educação formal de baixa qualidade vulnerabiliza a capacidade crítica dos cidadãos e promove a ignorância voluntária. A propagação de notícias falsas pela população pode ocorrer de maneira inocente, não intencional, por engano ou apenas como viés de confirmação, que leva sujeitos a buscarem e compartilharem informações que corroborem sua visão de mundo.

A notícia falsa criada com o objetivo deliberado de enganar faz crer ao envolver fragmentos de verdade em sua formulação e o seu teor funciona ao oferecer o conforto de uma explicação simples e aparentemente verossímil em tempos de incerteza. Em um mundo midiatizado, as fake news e a desinformação passam a oprimir indivíduos e comunidades que, ao se depararem com a mesma mensagem em diversos espaços, tendem a acreditar em sua veracidade e a se tornarem transmissores dela. Os próprios algoritmos vão passar a mostrar na tela mais conteúdos semelhantes ao que foi compartilhado. Assim, informações falsas podem se popularizar e alongar problemas de saúde pública.

Para a pesquisadora Isabel Cunha, que orientou o estudo na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esse fenômeno comunicacional criou um novo paradigma para a implantação das políticas públicas da saúde, especialmente aquelas voltadas às campanhas de vacinação.

“Para debelar o impacto de movimentos antivacina, será necessário lançar mão de estratégias mais audaciosas, que vão além de simplesmente comunicar. O ambiente infodêmico torna essencial identificar as ameaças da desinformação e desenvolver uma resposta customizada, capaz não somente de sanar as dúvidas do público, mas de dotá-lo de capacidade e empoderamento para enfrentar a onda de fake news que invade os celulares todos os dias. Para isso, a escuta ativa se mostra como a ferramenta mais adequada para identificar junto ao público o que é realmente necessário fazer”, afirma a professora.  


O aumento da desinformação está relacionado a tempos de turbulência política, social e econômica. A epidemia de conteúdo falso, desinformacional ou enganoso sobre o novo coronavírus não é isolado e faz parte de uma praga que afeta a saúde pública e outros setores da economia. São mentiras que relativizam consensos científicos, promovem curas falsas, desacreditam vacinas, impulsionam doenças e colocam a vida em risco. É possível observar que, mesmo antes da pandemia da COVID-19, a infodemia sobre vacinas já provocava hesitação no Brasil. Em 2015, o Programa Nacional de Vacinação (PNI) imunizou 95% da população-alvo contra diversas doenças infecciosas. Desse ano em diante, a adesão aos imunizantes caiu gradativamente e a abstenção atingiu índices cada vez maiores até a pandemia. Em 2020, a taxa de imunização chegou a apenas 66% do público-alvo e acendeu o alerta para a volta de doenças que estavam sob controle. Um exemplo é a poliomielite, que voltou a ameaçar as crianças.

A negação da ciência e dos fatos científicos é uma outra pandemia. A situação é crítica e não podemos esperar que ameaças dessa natureza cheguem à população sem respostas. É necessário explicar a ciência de maneira simples e acessível às pessoas. A COVID-19 se tornou uma oportunidade de encontrar e empregar novas ferramentas de preparação e resposta em relação ao ecossistema de informações sobre saúde pública. Entretanto, na América Latina, apenas a Argentina preparou uma estratégia focada na gestão de infodemias. Brasil, Chile, Equador e Paraguai apenas mencionam o assunto em plataformas governamentais. Os demais governos sequer mencionam o assunto.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma plataforma global para auxiliar especialistas no combate a infodemias, chamada EPI-WIN (WHO Information Network for Epidemics, em inglês). Por meio desse serviço, a agência dá acesso a conteúdo atual, preciso, fácil de entender e de alta qualidade, para amplificadores traduzirem e compartilharem com públicos-alvos específicos e estratégicos. A plataforma trabalha em parceria com governos, emissoras, agências internacionais e com as maiores redes sociais do mundo para identificar, organizar e responder em tempo hábil às notícias falsas e aos conteúdos desinformativos sobre saúde, com base em evidências científicas e fontes oficiais. O serviço funciona no endereço. 

O conhecimento assimilado até aqui não permitiu à humanidade entender como eliminar uma infodemia. Entretanto, já é possível saber como controlá-la em níveis menos prejudiciais à coletividade. A comunicação de risco eficaz deve ser capaz não apenas de reduzir o impacto psicológico de cenários de crise, mas, também, de dotar o público de capacidade e empoderamento para a adoção de medidas que efetivamente reduzam riscos daqui para frente. Novas pandemias surgirão.  

Fonte: CartaCapital

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