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Publicado em 24 de abril de 2023 às 10h02min
Por Ruy Rocha
Conversando com uma professora conhecida por seu firme engajamento humanista, ouvi o termo manosfera e fiquei impressionado com a ideia de uma rede de comunidades que defendem a superioridade dos homens frente às mulheres. Com diferentes nuances, diversos grupos masculinistas se organizaram para cultivar e manifestar a misoginia. Isso me fez viajar no tempo.
Há quase 20 anos, assumi uma disciplina chamada Comunicação e Tecnologia, que empregava como referências textos de Pierre Levy e Manuel Castells, com um olhar mais complexo, ou até mesmo livros dos apologistas da Internet, figuras como Nicholas Negroponte. Entre a distopia e a utopia digital, tínhamos diferentes visões, mas creio que ninguém imaginava o abismo com o qual nos deparamos hoje.
Parece que, mais do que os dados, o ódio constitui o Petróleo da Internet contemporânea, como descobrimos nos últimos anos, em que temos vivenciado diferentes capítulos da ascensão do fascimo digital. A forma como a federação de odiadores tem aglutinado machismo, homofobia, racismo para conquistar fama, lucro e poder político é notável, mas só passou a sensibilizar alguns setores da sociedade quando ficou evidente a ligação com o negacionismo científico, o neonazismo ou grupos que articulam ataques a escolas.
O grande ataque ao outro
Além de atacar maiorias minorizadas, a federação do ódio passou a atacar cientistas, professores, artistas, jornalistas, políticos moderados, enfim todas pessoas do complexo e contraditório campo progressista. Curiosamente, até pessoas e instituições conservadoras foram e são constantemente atacadas, como é o caso do Congresso e do Judiciário, partindo da premissa de que o barulho mobiliza. Muitas destas pessoas não deram a devida importância ao que se desenhava até se tornarem alvos: uma guerra cultural contra o conhecimento, contra o humanismo, contra os valores democráticos.
Chegamos neste cenário desolador com o protagonismo do Gafam, acrônimo que reúne os maiores conglomerados globais de informação: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. A recente e destrambelhada aventura de Elon Musk comprando o twitter, indica o quanto os bilionários – virtuais trilionários – se beneficiam do capital-informação, o que permite pensar num capital-desinformação.
O ódio é lucrativo
Para a extrema direita, a manipulação do ódio foi e é lucrativa de diversas maneiras: não só permitiu acumular mais dinheiro, permitiu pautar o aviltado debate público, reunir pessoas descontentes e retroalimentar seu próprio poder, pois o ódio gera ódio. Visibilidade é dinheiro e quanto mais nos engajamos numa discussão pautada pela extrema-direita, mas os colocamos sob os holofotes. Ao buscar reagir individualmente a isso, muitas vezes replicamos o discurso neofascita, favorecendo-os.
Tardiamente, mas ainda em tempo, parte da sociedade percebe que o problema exige soluções coletivas, complexas, que passam pela regulação democrática da mídia, em particular das plataformas que dominam nosso mundo, monetizando afetos, consumo e a própria política. Esta não é uma pauta restrita à esquerda, deve ser encampada por toda a sociedade.
As universidades, associações e sindicatos precisam se engajar na luta pela democratização da informação, seja debatendo sistematicamente a regulação democrática das plataformas, a guerra híbrida e a divulgação da ciência, seja propondo ações de fomento à difusão do conhecimento e do humanismo via plataformas digitais e outras mídias, tais como Rádio, TV e literatura em diversos formatos.
Recentes notícias que envolvem a valorização da cultura e do audiovisual ou da recomposição do orçamento universitário pelo governo federal animam neste momento decisivo. Devemos pensar, planejar e implantar projetos que envolvam a ideia de cidadania ativa, como contraponto à federação do ódio, que move uma guerra contra a democracia, o humanismo e até a própria ciência. A verdade e a democracia não florescem por si mesmas, é preciso plantá-las e cultivá-las cuidadosamente.
Publicado originalmente no Saiba Mais