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Publicado em 23 de setembro de 2024 às 16h28min
Tag(s): Ensino Superior
A investida contra a gratuidade das universidades públicas voltou a rondar o debate político. Na terça-feira 17, o deputado estadual Leonardo Siqueira (Novo) protocolou na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) um projeto de lei que autoriza a cobrança de mensalidades pelas instituições de ensino superior do estado, uma espécie de Fies para a educação pública.
O texto prevê a instituição, pelo estado, de um programa de financiamento estudantil, o Siga, que deve conceder empréstimos a estudantes para que eles paguem os custos das mensalidades. O custo de cada curso, segundo a proposta, ficaria a cargo das universidades.
São previstas duas modalidades de empréstimo: um deles, o Empréstimo com Amortizações Contingentes à Renda (ECR) prevê que os pagamentos sejam diluídos ao longo da vida do indivíduo, com prestações ajustadas de acordo com sua renda futura, o que torna o pagamento progressivo. Um segundo modelo prevê o financiamento de acordo com a renda do trabalho atual dos estudantes.
O texto ainda prevê que seja acrescida, ao montante inicial do empréstimo, uma sobretaxa de 25%. Estabelece que, ao longo do curso, o valor seja corrigido pelo IPCA acumulado no período. Depois do curso, caso a renda do trabalho supere a faixa de isenção, o empréstimo seria corrigido pela Taxa de Longo Prazo (TLP) acumulada no período; se inferior à taxa de isenção, deve vigorar a correção pelo IPCA do período.
O parlamentar argumenta que as universidades seriam ‘ineficientes’ e que os recursos das mensalidades permitiriam a elas serem mais sustentáveis. Esse mote, contudo, não é novidade na política. Foi utilizada pelo governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) ao encomendar, em 2017, um relatório ao Banco Mundial, que fazia a recomendação. O governo Jair Bolsonaro (PL), também tentou aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional para instituir as mensalidades, sob aplausos do próprio ministro da Educação à época, Abraham Weintraub, ele próprio um detrator das universidades públicas.
Para o o doutor em Educação, Nelson Cardoso do Amaral, também presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), a direita insiste em uma pauta inconstitucional. “Isso vai frontalmente contra o previsto na Constituição Federal”, apontou à reportagem, ao citar o artigo 206, que estabelece a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais financiados com recursos públicos, em qualquer nível escolar, e veta a cobrança pelo estudo.
A Constituição será a arma da oposição para tentar barrar o PL. A deputada estadual Ediane Maria (PSOL) já protocolou uma emenda que destaca a inconstitucionalidade do projeto.
“Cobrar mensalidades poderia excluir estudantes de baixa renda e restringir o acesso àqueles que não têm condições de pagar, contradizendo o princípio de igualdade de oportunidades. Cobrar mensalidades poderia aprofundar as desigualdades sociais ao limitar o acesso à educação superior apenas para aqueles que podem pagar. Isso poderia criar um sistema onde apenas os mais privilegiados têm acesso ao ensino superior, perpetuando ciclos de desigualdade”, grafou a parlamentar, que classificou o PL como indecente.
O deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL), membro da Comissão de Educação da Alesp, não vê chances de a proposta prosseguir. “Há um acordo, projetos só entram na pauta de votação se houver acordo entre todo os partidos — e nós, do PSOL, jamais vamos permitir isso”, declarou. Para o parlamentar, trata-se de uma jogada política do Novo para marcar posição a favor de um projeto neoliberal que tenta avançar com a privatização da educação.
Os falsos mitos que justificam a cobrança de mensalidades
Em conversa com a reportagem de CartaCapital, o professor Nelson Cardoso elencou algumas justificativas estabelecidas pelo PL e que configuram ‘falsos mitos’ para tentar emplacar a cobrança de mensalidade pelas universidades.
1. Países desenvolvidos fazem uso do sistema de cobranças
O PL cita que 20 países desenvolvidos, entre eles Austrália, Inglaterra, Chile, Coreia do Sul, Estados Unidos, Holanda, Japão e Nova Zelândia – já fazem uso da cobrança de mensalidades e que, portanto, isso seria factível ao Brasil.
“O projeto ignora uma questão central: a de que esses países já resolveram muitos de seus problemas e têm uma renda per capita bem alta, o que torna uma despesa a mais factível para as pessoas. No Brasil não é, basta olhar o nível da nossa desigualdade econômica. Quando você olha para o perfil dos estudantes das universidades federais, por exemplo, mais de 70% tem renda per capita entre um salário e um salário mínimo e meio”, considera.
Outro ponto, segundo o pesquisador, é que o PL propositalmente não leva em conta o nível de investimentos feitos pelo Brasil, em comparação aos demais países. Um relatório publicado no início do mês pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que o investimento brasileiro anual, por aluno, é um terço do investido pelos países que compõem a OCDE. O que torna a comparação ‘infundada’, avalia Cardoso.
2. Universidades têm baixa adesão da população mais pobre
O projeto de lei aponta que as universidades públicas têm dificuldade de incluírem a população mais pobre e que são formadas, em sua maioria, por alunos provenientes de famílias ricas.
O pesquisador rebate, destacando que o PL não considera a mudança no perfil dos estudantes das universidades públicas ao longo da última década, sobretudo com o advento da Lei de Cotas, em 2012.
Uma pesquisa realizada pela Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que, já em 2010, o percentual de estudantes das universidades federais vindos de escolas públicas e privadas já se equiparava em 50%. A partir de então, o percentual de universitários vindos das escolas públicas cresce, chegando a 64,7% em 2018.
Cardoso também destaca o impacto da lei afirmativa na renda per capita dos estudantes. Uma outra pesquisa feita pela Andifes mostra que, em 2010, pouco mais de 40% dos estudantes das universidades federais tinham renda mensal de mais de um salário, ou um salário mínimo e meio; em 2014, o percentual passa dos 60% e em 2018 chega aos 70%.
“É falso, portanto, afirmar que os estudantes das UFs são, em sua maioria, oriundos de famílias ricas. O perfil de renda total dos estudantes explicitado se aproxima do perfil de renda total da população brasileira”, avaliou.
3. Financiamento traria benefícios aos estudantes
O pesquisador também questiona a afirmação de que o financiamento trará benefícios aos estudantes, dado o aumento de tributação sobre os estudantes e as possibilidades de inadimplência. Cardoso não deixa de considerar o grau de inadimplência gerado pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o Fies, do governo federal, que chega a 50% este ano.
4. Matrículas em instituições privadas já prevalecem no Ensino Superior
O Ensino Superior brasileiro tem a maior parte das matrículas realizadas em instituições privadas, que concentra 78% dos alunos. Para o presidente da Fineduca, isso demonstra o desafio brasileiro de ampliar a oferta no ensino público superior, o que passa por garantir mais recursos para a expansão da rede, e para que as universidades possam não só bancar os seus custeios, como melhorar as suas estruturas, como laboratórios e equipamentos.
O Plano Nacional de Educação destina três de suas 20 metas ao Ensino Superior, sendo que, uma delas, propõe a expandir a taxa de matrículas na etapa para 50% da população, e promover para 33% a taxa de matrículas entre a população de 18 a 24 anos.
Fonte: CartaCapital