Sub-representação de acadêmicos negros no ensino superior

Publicado em 29 de novembro de 2024 às 14h33min

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Apesar dos avanços trazidos pelas políticas de inclusão no ensino superior, como a lei de cotas, a sub-representação de negros em cargos acadêmicos permanece como uma ferida aberta no Brasil. No caso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o problema não é diferente: o número de docentes negros ainda é minimo, refletindo um histórico de exclusão que afeta profundamente as estruturas de produção de conhecimento.  

Para Thiago Laurentino, psicólogo, servidor da UFRN, atuando na pró-reitoria de assuntos estudantis, essa sub-representação está diretamente ligada ao racismo estrutural. “A primeira coisa que a gente precisa pensar e reconhecer é que o racismo não acaba quando uma pessoa negra acessa o ensino superior, acessa a pós-graduação ou acessa uma instituição universitária enquanto docente. O racismo permanece, inclusive, dentro da instituição. um desafio dessa pessoa negra que ocupa esse lugar é receber o mesmo reconhecimento e o mesmo respeito que as pessoas brancas nesse lugar recebem”. 

Thiago Laurentino acrescenta ainda: “Isso é um desafio porque a gente percebe que essas pessoas frequentemente não são reconhecidas nesse lugar de produtor de conhecimento de intelectual, simplesmente pelo fato de ser uma pessoa negra. Outra coisa que a gente precisa reconhecer é que as questões estruturais em que a maioria da população vivia acaba permanecendo. Então, se a maioria da população negra tem menos renda, têm mais dificuldade de acesso às políticas públicas, têm menores salários, isso acaba continuando. [...] E para essa pessoa se dedicar à atividade intelectual exclusivamente como uma outra pessoa branca que vem de uma família mais estruturada, com melhor recurso financeiro, com mais renda, é mais difícil.”

A professora Juliana Teixeira Souza, do Departamento de História da UFRN, reforça que a exclusão de professores negros é resultado de um processo histórico. “ A universidade não foi, de maneira alguma, uma instituição criada com o objetivo de contribuir  para a justiça social ou para a diminuição  das desigualdades no país.  Quando o governo federal foi assumido e dirigido por um grupo político de centro-esquerda, houve muita resistência nas universidades. Houve resistência à adesão ao REUNI, que ampliou enormemente o número de vagas nas universidades. Houve resistência à adesão ao ENEM como forma de ingresso, que rompia a barreira psicológica do vestibular, porque muitas pessoas acreditavam que a universidade era um espaço tão distante  que sequer se inscreveram no vestibular. 

Juliana descreve ainda que “os jovens pobres, eles se viam desestimulados a tentar, pelo menos tentar, entrar nas universidades. Houve resistência às cotas que hoje garantem as vagas de alunos de baixa renda, de alunos negros, de alunos indígenas, de alunos com deficiência”.

Embora negros representem 56% da população brasileira, de acordo com o IBGE, sua presença no corpo docente das universidades públicas está longe de alcançar esse percentual, como explica Juliana: “A docência no ensino superior é uma carreira muito restrita, é um campo de trabalho reduzidíssimo. Nós temos o quê?  Em torno de 300.310 mil docentes no ensino superior em todo o Brasil, isso representa 0,14, 0,15% da população no máximo. Ou seja, é uma carreira extremamente concorrida. 

A professora acrescenta: “É uma carreira dominada por pessoas com um perfil determinado. [...] Quantos alunos negros fizeram parte de seus grupos de pesquisa  nos últimos anos? Quantos alunos negros vocês orientaram nos últimos anos? Quantos alunos negros vocês induziram, vocês estimularam a produzir conhecimento, a fazer pesquisas, a escrever artigos? O número é reduzido, com toda certeza. E se eu disser para esses professores que eles desqualificam as pessoas negras em razão de sua cor, em razão de sua aparência, é muito provável que a maioria se sinta profundamente ofendida, porque as pessoas não se reconhecem, não se identificam como racistas”. 

Thiago Laurentino explica que a questão vai além de números, não basta abrir as portas, é preciso criar condições reais de permanência e valorização. “Não existe tanto compromisso institucional local com ações de promoção adequada à igualdade racial. Por exemplo, uma possibilidade de mudar isso era de ter um compromisso de representatividade de inclusão de pessoas negras nos postos de alto escalão. Isso é uma questão necessária. Nas pró-reitorias, quantas pessoas negras a gente tem ocupando os cargos das pró-reitorias? das diretorias da universidade? Isso é uma coisa que precisa ser analisada e precisa ser discutida".

Outra questão levantada por Thiago "é que a universidade não tem uma política centralizada sobre promoção da igualdade racial, existem algumas ações que são pulverizadas na universidade, são dispersas na universidade ou em algum departamento. O ideal era que existisse, assim como existe uma Secretaria de Inclusão e Acessibilidade, que é voltada para inclusão e atendimento às pessoas com deficiência, seria necessário também criar uma secretaria, por exemplo, deste tipo para as questões raciais, questões de gênero e de sexualidade. Isso seria primordial, porque essa secretaria poderia agir de forma sistêmica e poderia se infiltrar nas ações da graduação, da pós-graduação, da assistência estudantil, da política de gestão de pessoas na universidade.”

Para ambos, a solução não está apenas em ampliar as vagas destinadas a negros no ensino superior, mas em garantir condições para que esses profissionais permaneçam e prosperem na academia. Thiago defende que as universidades assumam a responsabilidade de criar redes de apoio que vão além do acadêmico: “Como as pessoas negras não fazem parte da gestão do alto escalão da universidade, acaba que as questões raciais não são percebidas como um problema. Como a maioria dos gestores das instituições universitárias são pessoas brancas, elas acabam entendendo que não tem um problema racial a ser resolvido, porque elas estão sendo beneficiadas por esse problema. Se a gente tivesse uma maior quantidade de pessoas negras nos cargos de gestão, no alto escalão das universidades, se a gente tivesse mulheres, pessoas com deficiência etc, essas pessoas teriam condições de colocar os problemas em que a comunidade que elas representam vivenciam e poderiam estar propondo alternativas. Isso não acontece hoje. Muitas instituições não conseguem visualizar e agir nos problemas que dizem respeito às pessoas negras, às pessoas indígenas, às pessoas com deficiência, às questões relacionadas a gênero e pessoas LGBTs”.

A professora Juliana reforça que as políticas afirmativas devem ser acompanhadas por mudanças legislativas: “Eu acredito que essa mudança, a ampliação da presença negra nos quadros docentes,  ela só pode ocorrer por meio de uma intervenção externa,  por meio de medidas legais que asseguram que essa mudança ocorra, que imponha essa mudança às universidades”. 

O episódio final da série “Ecoar: Vozes e Lutas Negras na Educação” propõe uma reflexão urgente: como as instituições podem se comprometer com ações concretas para corrigir essa desigualdade histórica? A resposta está no fortalecimento das políticas de inclusão, mas também na desconstrução do racismo estrutural que permeia o ensino superior.

A sub-representação de acadêmicos negros é um espelho das desigualdades brasileiras. Mudar essa realidade exige não só vontade política, mas também um olhar atento para o impacto humano que a falta de representatividade causa. Afinal, a luta pela presença negra na academia é, acima de tudo, uma luta por reconhecimento e pertencimento.

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