SBPC EDITORIAL – A liberdade de expressão tem limites éticos e legais

Publicado em 13 de janeiro de 2025 às 10h22min

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Logo nas primeiras páginas do célebre romance 1984, George Orwell apresenta as frases principais que definem o regime totalitário descrito na obra. Entre elas, estão paradoxos como: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão” e “Ignorância é força”. Esses slogans ilustram como a manipulação da linguagem e da verdade são centrais para a manutenção do poder.

Faltou, talvez, “Mentira é verdade”. É o que vemos hoje, em especial depois que uma colaboradora do então presidente Donald Trump falou em “verdades alternativas” para justificar a enxurrada de mentiras que propalava.

Atualmente, vemos algo similar emergir no contexto das redes sociais e das medidas adotadas pelos seus controladores, como Mark Zuckerberg. o pretexto de proteger a liberdade de expressão, o dono da Meta prometeu que essas plataformas retirarão os limites aos discursos de ódio e informações falsas.

Essa situação levanta questões fundamentais para a democracia, que se baseia no diálogo, no respeito à diferença e na liberdade de expressão, organização e voto. Tais pilares permitem que a sociedade chegue a decisões coletivas que, se não são as melhores, pelo menos possuem o maior apoio popular.

Contudo, a liberdade de expressão tem limites éticos e legais. Ela não inclui o direito de incitar crimes, especialmente crimes contra pessoas.

Além disso, a liberdade de expressão não deve servir como escudo para a disseminação deliberada de mentiras. Ela supõe um compromisso tanto com fatos quanto com valores, o que é essencial nesse contexto. Fatos representam a realidade objetiva e devem ser apurados por jornalismo, polícia, judiciário e ciência. Daí, o compromisso com a verdade – o que, por sinal, já é também um valor. Já os valores orientam decisões baseadas nessa realidade. Nossas ações são governadas por valores, esperando-se que estes sejam positivos e não destrutivos. O jornalismo, por exemplo, busca esclarecer o que aconteceu no imediato; a ciência, por sua vez, procura compreender fenômenos em maior profundidade e regularidade.

Um caso recente ilustra essa dinâmica: o assassinato de um secretário-adjunto de Osasco por um policial a ele subordinado. O jornalismo tem a função de informar os acontecimentos, enquanto polícia e judiciário investigam e julgam. Precisamos saber o que aconteceu. A ciência, por outro lado, pode analisar padrões mais amplos, como a violência policial e seus determinantes sociais. Embora a apuração jornalística e policial leve à punição do autor, a ciência identifica os fatores estruturais que contribuem para esses atos, ajudando a prevenir sua repetição.

O respeito à verdade é central para qualquer esforço democrático. A ciência, embora nunca alcance uma “verdade absoluta”, busca aprimorar continuamente nosso entendimento, oferecendo verdades provisórias e passíveis de refinamento. Esse progresso é o oposto do relativismo, pois a ciência trabalha para encontrar verdades independentes de interesses particulares.

Diante disso, é preocupante o anúncio de que grandes redes sociais deixem de combater a desinformação e discursos de ódio sob a justificativa de liberdade de expressão. Pior ainda, que elas estimulem tais falas! Essa postura ignora o impacto devastador que essas práticas podem ter, inclusive fomentando violência e morte de inocentes.

Aliás, a chave do sucesso das redes sociais está no fato de que são mais voltadas ao entretenimento do que à informação. Elas fazem parte de um business que ganha quando engaja seus frequentadores. Isso significa que apelam a seus afetos – e infelizmente, hoje em dia, o ódio atrai mais que a amizade ou o amor: as paixões negativas de que fala a tradição filosófica entusiasmam mais do que as positivas. Tudo isso, aliás, resultando em dinheiro: quanto mais ódio, mais lucros. Daí que as redes tenham interesse em proliferarem os discursos tóxicos.

Por isso mesmo, o anúncio de que também a Meta, responsável pela maior parte das redes sociais hoje disponíveis, se desligará de qualquer compromisso com a verdade ou com a limitação ao ódio e à violência é preocupante. É um sinal claro do impacto da eleição de Trump para a direção do país mais poderoso do mundo, e dos riscos que as políticas por ele anunciadas agravem o clima nocivo de uma ordem mundial já perturbada pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio.

Mais que nunca, será preciso não apenas regular as redes – para que não piorem as relações humanas – mas também assegurar a democracia. As declarações iniciais do futuro presidente dos Estados Unidos constituem ameaças. Ele sugere invadir o Panamá, anexar à força o Canal e a Groenlândia, talvez o Canadá, impor taxas de importação leoninas sobre os países que não se curvarem a ele – inclusive o Brasil. A caixa de Pandora aberta com as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio pode revelar ainda mais monstros.

Uma união ampla, internacional, pela democracia e pelos valores humanos, é, mais que nunca, urgente e necessária. O primeiro passo para tanto é o combate à mentira e ao ódio, se quisermos preservar os valores que sustentam a convivência democrática.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Fonte: SBPC

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