Caminho para punir torturadores da ditadura divide opiniões

Publicado em 13 de dezembro de 2011 às 11h20min

Tag(s): Direitos Humanos



Um dos pontos fundamentais da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil, a punição penal de torturadores da ditadura (1964-85), segue como tema em aberto um ano após a condenação do país. Foi fixado ainda no governo Lula o entendimento dentro do Executivo federal de que a questão relativa à punição penal de torturadores é tema para o Judiciário. Os eventuais efeitos à imagem do país no cenário internacional têm sido insuficientes para acelerar medidas de cumprimento às determinações do órgão, ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA).
A posição foi reafirmada na gestão de Dilma Rousseff, e é lamentada pelos responsáveis pela ação levada à Corte. “Essa chamada governabilidade, quem era o líder do governo naquela época? (José) Sarney. E hoje é base aliada. Essa submissão leva a uma postura covarde. Não tem outro termo”, diz Criméia de Almeida, integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Crimeia vai além e especula sobre o comportamento da presidenta, presa e torturada pelo regime autoritário: “Não acredito que quem tenha sido vítima não queira Justiça. Isso é o mínimo que se espera das vítimas. Pode ter medo, mas não querer, não acredito”.
A comparação com a Argentina, fértil em exemplos de transição à democracia, é inevitável. Logo em 1983, com a redemocratização, o presidente Raúl Alfonsín promoveu a Comissão Nacional sobre Desaparição de Pessoas (Conadep) e o julgamento das Juntas Militares que governaram o país nos anos anos anteriores. Com isso, o vizinho está adiantado no cumprimento dos quatro passos da redemocratização considerados na sentença da Corte da OEA: reparação, verdade, Justiça e reformas institucionais.
Após refluxo iniciado ainda na gestão de Alfonsín, e aprofundado na década seguinte, em 2003 o país retomou com força total o julgamento dos repressores. Por decisão de Néstor Kirchner, foram revogadas as leis de Ponto Final e de Obediência Devida, as versões locais da anistia. Dois anos depois, a Corte Suprema definiu pela inconstitucionalidade dessas medidas.
Carolina Varsky, diretora da área de ações judiciais do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), da Argentina, entende que o fundamental para balizar a decisão foi o precedente da Corte Interamericana, que condenou o Peru no caso do massacre de Barrios Altos, conduzido pelo governo de Alberto Fujimori em 1991 em Lima.
“Esta decisão ajudou muito a que a Câmara Federal e logo a Corte Suprema se pronunciassem sobre a necessidade de se investigar estes fatos porque, de fato, a Argentina poderia incorrer em uma falta internacional.” Dados atualizados até novembro por órgãos oficiais de Buenos Aires indicam a condenação de 229 colaboradores do regime e a abertura de ação contra 1.778 pessoas.
Glenda Mezarobba, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa a transição de períodos autoritários para regimes democráticos em diferentes países. Ela entende que um dos fatores que deixaram o Brasil em um ritmo mais lento nesse sentido é o fato de o primeiro governo pós-ditadura não ter sido eleito democraticamente – Tancredo Neves foi escolhido pelo Congresso e morreu antes de ser empossado, sendo sucedido por José Sarney, da Arena, partido de sustentação da repressão.
“Outro aspecto a se chamar atenção é que as ações (penais) são prerrogativas do Ministério Público, diferente de Argentina e Chile, nas quais as vítimas podem entrar diretamente com as ações”, explica Glenda.
A professora da Unicamp entende que é hora de testar o Judiciário na primeira instância, uma situação que não ocorreu com frequência no caso brasileiro. “Na minha interpretação, a Lei de Anistia não garante nenhuma sustentação jurídica para que a impunidade se mantenha até hoje”, diz. “Aplica-se o discurso de que precisamos esquecer para garantir a impunidade. Isso não funciona. O perdão é prerrogativa das vítimas, não adianta ficar repetindo esse discurso porque ele é vazio.”
É o mesmo entendimento da Corte Interamericana, que reafirmou no caso brasileiro aquilo que vem dizendo aos demais países da região: violações aos direitos humanos são crimes imprescritíveis. “Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia”, diz a sentença.
O juiz convidado para o caso, o brasileiro Roberto de Figueiredo Caldas, acrescentou em seu voto que a jurisprudência internacional é clara ao dizer que não há lei ou norma interna que possa “impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade”.
STF no meio do caminho
O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, não se vê na obrigação de reformar a decisão proferida em abril de 2010, oito meses antes da decisão emitida pela Corte internacional, quando interpretou que a Lei de Anistia é fruto de um amplo acordo da sociedade e serve para a proteção das práticas cometidas pelos agentes da repressão a serviço do Estado. Em dezembro do ano passado, o presidente do STF, Cezar Peluso, manifestou que a decisão da OEA não provocaria a revogação da decisão.
Paulo Vannuchi, que ocupou a Secretaria de Direitos Humanos durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, entende que o Supremo terá de reformar sua visão, mais cedo ou mais tarde, e quanto antes o faça, melhor. A oportunidade é o agravo apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) após a divulgação da sentença da Corte solicitando nova avaliação sobre a Lei de Anistia.
Ele acredita, porém, que não cabe esperar dos magistrados a resposta mais adequada para o caso. “A militância dos direitos humanos e a melhor democracia brasileira têm de reunir condições para oferecer imediatamente ao Supremo recursos para que possa rever sua decisão”, diz Vannuchi.
O ex-ministro pensa que teria pouco efeito acionar as instâncias inferiores por conta do conservadorismo predominante em questões de direitos humanos. Em novembro, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região extinguiu o processo que cobrava a responsabilização civil de integrantes da Operação Bandeirante, entre os quais os torturadores de Dilma. O desembargador Santoro Facchini argumentou que, sob a ótica da legislação nacional, os crimes prescreveram, e não se deve tomar em conta os tratados internacionais firmados pelo país, o que levou a Procuradoria Regional da República a lembrá-lo sobre o teor destes tratados, alguns deles básicos, e indicar que o país está “vinculado internacionalmente ao conceito de crime contra a humanidade”.
“É o discurso canhestro do soberanismo”, aponta Vannuchi, que lembra que o Brasil aderiu voluntariamente à Convenção Americana de Direitos Humanos, que o obriga a cumprir as decisões da Corte Interamericana. “Tem-se todo o direito de discordar da decisão, mas neste caso o que está dizendo é o que, sob qualquer exame do Direito, será inequívoco”. Vannuchi acrescenta ainda que um bom trabalho da Comissão da Verdade poderá fornecer instrumentos valiosos para ações judiciais e para que se mude a visão sobre o tema.
Beatriz Affonso, diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) para o Brasil, um dos órgãos responsáveis pela ação apresentada à OEA, não acredita nessa visão. Ela lembra que a composição do STF muda lentamente e cobra uma postura firme do governo Dilma. “É um contexto muito diferente dos outros países. Passou muito tempo. A gente tem de lidar com o cenário. Precisa de um fortalecimento de uma posição política séria.”
Fonte: Rede Brasil Atual
 

ADURN Sindicato
84 3211 9236 [email protected]