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Publicado em 27 de janeiro de 2012 às 13h50min
Tag(s): Opinião
Na primeira vez, eles desapareceram fisicamente. Foi durante a ditadura militar, principalmente entre os anos 60 e 70. Não foram tantos assim, dizem os que preferem minimizar o caráter criminoso da ditadura no Brasil, alegando que a ditadura chilena, de Pinochet, matou mais gente. De fato, segundo contagens cautelosas, Pinochet legou aos chilenos um saldo de três mil mortos ou desaparecidos, mas no Brasil, embora a quantidade não seja idêntica, a brutalidade foi equivalente.
Por Eugênio Bucci*
Em nosso país, os levantamentos mais confiáveis apontam 387 casos. O número ainda é aproximado, pois há capítulos que precisam ser esclarecidos. Por exemplo: sabe-se que, no dia primeiro de abril de 1964, quando os militares desfecharam o golpe de Estado, houve execuções de militantes ligados a movimentos de trabalhadores rurais no Nordeste, mas não se sabe o número de mortos. Mesmo assim, a despeito de pequenas imprecisões, ninguém mais contesta que cerca de 400 cidadãos brasileiros tiveram suas vidas ceifadas durante os anos de chumbo e, desses, aproximadamente 130 foram “evaporados”. Deles não temos os restos mortais: foram arrancados do mundo dos vivos sem jamais ter sido entregues ao mundo dos mortos.
O segundo desaparecimento veio mais tarde, com a chamada redemocratização. Esse desaparecimento vem sendo construído aos poucos, por força do esquecimento, principalmente por força do esquecimento oficial. Tem sido compacta a resistência do Estado brasileiro – isso depois de dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e outros dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva – em apurar criteriosa e profundamente o que se passou: quem sequestrou, quem torturou, quem matou, quem mandou matar, quem deu sumiço nos corpos, de que forma, quando, onde (o porquê todos nós já conhecemos). Até hoje, o Estado brasileiro não disse oficialmente o que foi feito com os prisioneiros indefesos que morreram nos porões do regime.
Atenção, leitor: não se trata de prender e perseguir torturadores. Estamos falando aqui de alguma coisa anterior e mais essencial: saber o que aconteceu, saber do paradeiro dos corpos, saber quem foram os agentes desses crimes.
K., um alento
Agora, finalmente, a esperança de que pelo menos o segundo desaparecimento seja revertido ganhou um novo impulso. No final do ano passado, no dia 18 de novembro, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que institui a Comissão Nacional da Verdade, cuja função é apurar as violências cometidas pela repressão. A lei é uma conquista histórica, sem dúvida, mas há um dado que começa a preocupar. Desde novembro até aqui, a comissão não foi constituída e, por isso, ainda não existe na prática. No vazio, crescem as perplexidades. Por que a demora? Quem serão seus integrantes? Eles terão compromisso com o esclarecimento da verdade ou terão mais compromisso com as acomodações de praxe, as que têm prevalecido desde o fim da ditadura?
A resposta está nas mãos da presidente da República. A ela cabe nomear a comissão. A propósito, se ela resolvesse essa pendência agora em janeiro, junto com a reforma ministerial, daria um sinal mais afirmativo sobre o que pretende fazer nessa área. Aguardemos.
Saber em detalhes, oficialmente, como operou a máquina repressora da ditadura militar é uma exigência prévia da ordem democrática. Um Estado que silencia, que finge que essa tragédia não aconteceu, é um Estado que, a posteriori, vai se tornando cúmplice da barbárie. Portanto, é um Estado indigno da ordem democrática. Essas palavras talvez soem demasiadamente principistas, mas aqui não há como tergiversar. Trata-se, verdadeiramente, de uma questão de princípio. Um Estado que não se movimenta para encontrar seus desaparecidos é um Estado que não quer limpar sua própria história, sua “piscina cheia de ratos”.
É doloroso admitir o trauma do desaparecimento. Mais doloroso ainda é falar sobre ele. Mas é indispensável, tanto para os parentes que ficam como para a democracia que virá. Recentemente, o jornalista e professor Bernardo Kucinski, no livro K. (editora Expressão Popular, 180 páginas), expôs ao país sua representação particular. Em 1974, ele perdeu a irmã, Ana Rosa, que era professora de Química da USP, desaparecida na repressão. K. é um relato curto e magnífico, voz de um luto familiar, homenagem à memória de uma nação. Um alento, ainda que trágico, para os que não querem seguir esquecendo.
Se não honrarmos esses mortos sem paradeiro, não honraremos a nós mesmos.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Fonte: Observatório da Imprensa