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Publicado em 13 de fevereiro de 2012 às 13h02min
Tag(s): Direitos Humanos
A experiência acumulada por profissionais da saúde mental no acompanhamento de vítimas do terrorismo de Estado na Argentina é de tal importância que já começou a transcender as fronteiras.
Por Marcela Valente*
Brasil, Chile e Uruguai, que sofreram o embate das ditaduras nos anos 1970 e 1980, como a Argentina, recebem os resultados desta experiência que se manifesta em uma crescente produção de materiais para a abordagem dos sobreviventes das sangrentas repressões e de seus familiares.
Foi o que contou à IPS a psicóloga Fabiana Rousseaux, diretora do Centro de Assistência a Vítimas de Violações dos Direitos Humanos Dr. Fernando Ulloa, que funciona desde 2010 na Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Direitos Humanos argentino. “No Centro se oferece assistência psicológica e apoio médico a vítimas que sobreviveram ao terrorismo de Estado, a seus familiares e outras pessoas que sofreram o impacto da fragmentação familiar ou foram atingidas por esta história”, explicou.
Assim, Rousseaux se referiu às dramáticas consequências da repressão da ditadura de 1976 a 1983, que deixou quase 11 mil presos desaparecidos, segundo registrado até agora por esta Secretaria, mas que estimativas de organizações não governamentais elevam para 30 mil. Os detidos e detidas em centros clandestinos ou campos de concentração, que foram criados naquele período nas áreas mais povoadas do país, sofreram variadas práticas de torturas, humilhações e ataques sexuais, entre outros abusos. Muitos desses presos foram executados ou arremessados vivos de aviões no Rio da Prata. E as crianças nascidas em cativeiro foram retiradas de suas mães e entregues com documentos falsos para adoção.
Os sobreviventes agora são vítimas e, ao mesmo tempo, testemunhas nos julgamentos contra os repressores e, “mediante seu depoimento, revivem situações muito traumáticas”, explicou a especialista. “É impressionante ver a atualidade desses fatos no dia a dia das pessoas que os sofreram. E contar é voltar a viver”, disse Rousseaux se referindo às quase 4.500 testemunhas que depuseram nos julgamentos reiniciados após a anulação da lei de anistia, aprovada em 2003 no início do governo centro-esquerdista de Néstor Kirchner, e a sentença de inconstitucionalidade das mesmas, emitida pelo Supremo Tribunal de Justiça em 2005.
Quanto aos familiares, destacou que “um tema recorrente é a ideia de que não se pode fazer o funeral de uma pessoa desaparecida por não existirem seus restos”. Contudo, entende que a experiência demonstra que “nem sempre é assim. Cada um faz o que pode com o que lhe coube viver. E pode-se trabalhar para encontrar outras vias que permitam às pessoas trabalhar essa dor. Naturalmente, às vezes é possível, outras não”, afirmou. Além da assistência no Centro, os profissionais da saúde mental capacitam seus colegas de hospitais públicos das províncias. “Temos 45 profissionais em Buenos Aires e uma rede em todo o país, que permanentemente incorpora especialistas”, acrescentou Rousseaux.
Os especialistas do Centro Ulloa também formam os médicos das juntas que avaliam o dano causado às vítimas para autorizar a reparação econômica, disposta pela lei para os que sofreram terrorismo de Estado. Para Rousseaux, é preciso que esses profissionais “pressuponham” o dano físico e psicológico decorrente de se ter ficado detido durante a ditadura, sem necessidade de submeter a pessoa a um interrogatório nem de pedir provas disso.
O Centro acompanha as “vítimas-testemunhas” nos depoimentos e assessora operadores do Poder Judiciário desde que foram reabertos os julgamentos contra os repressores, interrompidos pelas leis de anistia do final da década de 1980 e pelo indulto do então presidente Carlos Menem (1989-1999). Este trabalho, em conjunto com juízes, promotores e querelantes, deu origem a um Protocolo de Intervenção para o Tratamento de Vítimas-Testemunhas no Contexto de Processos Judiciais, publicado em setembro de 2011. “A intenção deste protocolo é que, no afã do ato de administrar justiça, não ocorram novos mecanismos de “revitimização” ou “retraumatização” das vítimas-testemunhas”, diz o documento.
O protocolo, também utilizado nos países vizinhos, recorda que o depoimento da vítima deve ser parte da tarefa reparadora do Estado, e esclarece que essa pessoa “não é um objeto de teste”, como sugere o direito penal, mas “um sujeito de direitos”. A cartilha orienta sobre o modo menos lesivo de intervenção judicial sobre estas pessoas que, em muitos casos, tiveram que esperar por décadas para que o Estado as convocasse a testemunhar sobre sua experiência limite. Por isto, os profissionais do Centro recomendam aos operadores judiciais se capacitarem em proteção e promoção de direitos humanos ou que peçam apoio de outras instituições governamentais, e dá uma série de conselhos práticos.
Por exemplo, fazer com que, no possível, a vítima-testemunha seja citada, recebida e auxiliada a todo momento por um mesmo operador de justiça. Evitar a notificação por correio e preferir os contatos telefônicos para suas citações. Também é sugerido que se explique aos citados os motivos da convocação, sem apelar para forças de segurança para conduzi-los. Facilitar-lhes diárias e transporte, não fazê-los esperar e muito menos deixá-los expostos ao contato com os acusados.
Além do Protocolo, o Centro já produziu outras cartilhas que servem para capacitação de profissionais da saúde mental, como “Consequências Atuais do Terrorismo de Estado na Saúde Mental”. Este documento afirma que muitas vítimas ou familiares não se aproximam para uma consulta sobre seu mal-estar físico ou psíquico “devido ao terror, que produz abatimento e paralisia” em muitos dos afetados, mesmo depois de anos. O texto “Acompanhamento de Testemunhas nos Julgamentos contra o Terrorismo de Estado” é outro em que são relatadas algumas experiências que podem servir de base para a tarefa que se desenvolve em outros países onde há vítimas de ditaduras.
Rousseaux disse que, nos últimos tempos, o Centro Ulloa está se abrindo à demanda de outros indivíduos que sofrem violência das forças de segurança, ou que são vítimas do tráfico de pessoas. São violações dos direitos humanos cometidas na democracia. Porém, seu conhecimento sobre as consequências do terrorismo de Estado é sua maior contribuição, já que tiveram que partir “da criatividade, mais do que da experiência” para ajudar as vítimas de um Estado que, em lugar de proteger, infundiu o terror.
* A autora é corresponde da IPS.
Fonte: Opera Mundi