Memória: O caminho da verdade

Publicado em 25 de junho de 2012 às 10h52min

Tag(s): Direitos Humanos



A região canavieira do Rio de Janeiro está em decadência. No norte do estado, em direção ao Espírito Santo, estão os escombros da usina Cambahyba, que voltaram ao noticiário recente após declarações de um ex-delegado do Dops capixaba, Cláudio Guerra: o local teria sido usado para incinerar corpos de combatentes presos pela ditadura.
A usina Cambaíba, onde a ditadura teria incinerado corpos de opositores
Alucinação, tentativa de despiste ou revelação macabra? “O que diz essa figura, esse humanista súbito, é perfeitamente plausível. O fato de ele não constar nos documentos mostra que ainda há muitas lacunas. Se 5% do que diz for verdade, ele é um mini-Goebbels”, afirma o jornalista Eric Nepomuceno, referindo-se ao ministro nazista. “Se for mais de 5%, é um genocida.”
Esse é apenas um dos desafios da Comissão Nacional da Verdade, cujos sete integrantes foram nomeados em meados de maio pela presidenta Dilma Rousseff.¬ Eles – Cláudio Fontelles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Rosa Cardoso e Paulo Sérgio Pinheiro – terão dois anos para percorrer um caminho espinhoso, que os militantes de direitos humanos conhecem bem.
Para o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, a comissão deve assumir uma dimensão de escuta pública das vítimas, de debate com a sociedade, para criar uma cultura política contra a violência do Estado. “A comissão vai se amparar na força dos testemunhos, enquanto os agentes repressores vão se amparar nos arquivos que eles mesmos produziram.”
Instalação da Comissão da Verdade: reconstrução do passado recente brasileiro
brão observa que o país nunca teve tradição de sistematização e enfrentamento da violência. “Até agora, trabalhou com a lógica da responsabilidade estatal. A Comissão da Verdade, que não tem o propósito de fazer reparação, tem a tarefa de fazer as responsabilizações individuais. É um mecanismo privilegiado da justiça de transição.” O grupo terá acesso a mais de 70 mil processos, com testemunhos de vítimas.
“A verdade só é possível de ser conquistada à medida que haja um trabalho coordenado nas diferentes esferas do poder estatal”, afirma o secretário, para quem informações como a de Guerra devem ser relativizadas e estão condicionadas à investigação. “Há muito o que apurar. Isso ajuda o país a compreender o espectro da dimensão da ditadura. É necessário o entrecruzamento de informações”, afirma. Ele lembra ainda que os arquivos da ditadura devem ser lidos de forma contextualizada. “Não refletem verdades factuais, são documentos apenas para justificar a violência.”
Guerra suja
Cláudio Guerra é o protagonista do livro Memórias de uma Guerra Suja, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros. O ex-delegado dá aos autores depoimentos sobre episódios marcantes da ditadura, como o atentado do Riocentro, o acidente que matou a estilista Zuzu Angel, o planejamento da morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury e do jornalista Alexandre Baumgarten. Todos até hoje cercados de suspeitas.
E traz informações inéditas, a serem apuradas. Entre elas, a incineração de corpos de militantes na usina Cambahyba, ou Cambaíba, como hoje se escreve.
Abrão considera relevante, por exemplo, o fato de as declarações do ex-delegado fazerem menção à participação direta da iniciativa privada no apoio à ditadura, como no caso da usina. “Também por isso há uma resistência tão grande (à investigação)”, acrescenta Nepomuceno. “Tem gente não com o rabo, mas com metade do corpo dentro.”
Isso chamou igualmente a atenção do escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que procura informações que levem ao paradeiro de sua irmã Ana, sequestrada em 1974 por agentes da repressão e nunca mais vista.
Bernardo leu o livro. E lembrou que “jorrava dinheiro de empresário para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas”, segundo declarou em entrevista a Saul Leblon, na agência Carta Maior.
O ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos Nilmário Miranda não crê em despiste no caso de Cláudio Guerra. “Ele está se culpando de coisas monstruosas. Por que faria isso? Com toda a monstruosidade das descrições, o importante é que as informações sejam preciosas para as famílias”, defende. “Tem coisas que só se vai saber se os de lá falarem.” Nilmário diz ainda que teve, por meio do livro, a primeira informação desde 1975 sobre Nestor Veras – o ex-delegado teria dado os dois “tiros de misericórdia” no trabalhador rural e líder comunista. “Uma parte da sociedade está entendendo que isso é importante para a democracia, para o país. Nossa democracia é uma transição incompleta, com muitos buracos. Para a transição não tem nada tardio.”
A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) vê “consistência, coerência e lógica” no relato de Guerra. “É um nível de detalhe e de profundo conhecimento de quem esteve naquela tragédia que nos deixa muito assustados. A cada relato como esse, as famílias reavivam sua dor.” Para ela, este é o momento de apurar e punir os crimes cometidos, também considerando a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação. “Não há mais desculpa. Vai ter de abrir tudo (os documentos) e não há mais concessão possível. Ou se faz isso de uma vez, ou lamentavelmente ficaremos a dever às futuras gerações.”
“O governo já deveria ter chamado esses familiares e as entidades”, critica a vice-presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, falando sobre o episódio Guerra. “A pessoa fala uma coisa dessas e nada acontece? É uma angústia para os familiares. ¬É uma tortura, uma das que continuam.” Ainda em maio, o Ministério Público Federal (MPF) em Campos, no norte fluminense, determinou abertura de investigação para apurar a denúncia de incineração de pelo menos dez corpos na usina.
O pedido foi feito pelo procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, um dos que integram o grupo de trabalho denominado Justiça de Transição. São desse grupo os denun-ciantes dos¬ militares Sebastião Curió,¬ no Pará, e ¬Carlos Alberto Brilhante Ustra, em São Paulo, por crimes da dita¬dura. As investigações do MPF se alinham à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil por violações de direitos humanos na Guerrilha do Araguaia. A fundamentação é que o desaparecimento de pessoas configura crime de caráter permanente, sem aplicação da Lei de Anistia. “Um pacto autoritário”, define Paulo Abrão, referindo-se à lei de 1979.
Nova visão
Por mais que encontrem resistência, até mesmo no Judiciário, ações como a do Ministério Público mostram alguma mudança de rumos no país, quase sempre refratário às revisões históricas. Em abril, a Justiça determinou a alteração na certidão de óbito do militante João Batista Drummond, morto em 1976, do local da morte (DOI-Codi) e do motivo (torturas físicas). “A memória é resultado dessa movimentação”, comenta Abrão.
Militar aposentado é cercado por manifestantes na porta do Clube Militar, no Rio de Janeiro: comemoração do golpe também é contestada (Foto: Vanderlei Almeida/ AFP Photo)
Isso pode provocar, inclusive, uma nova visão da identidade nacional: “Não somos apenas um povo cordial ou afeito ao jeitinho, mas também que sabe resistir à opressão”.
Recentemente, começaram a surgir os “esculachos” – com inspiração nos escrachos argentinos –, manifestações de denúncia de agentes da ditadura promovidas em vários estados por uma organização denominada Levante Popular da Juventude. Foram também jovens – muitos deles sem nenhuma ligação com pessoas sequestradas e mortas pela ditadura – que fizeram protestos marcantes diante do Clube Militar, no Rio de Janeiro, contra a comemoração dos 48 anos do golpe de 1964.
A professora Cristina Meneguello, do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), defende a importância de “lugares de conscientização” para que as pessoas saibam o que se passou naqueles tempos. Cita o exemplo do Memorial da Resistência, na região central de São Paulo, no mesmo local que abrigava o antigo Dops. Ela relata a reação dos estudantes que vão até lá.
“Os professores contam que os alunos chegam fazendo aquela fuzarca. Metade já não quer entrar nas celas. O ônibus volta num silêncio... Eles sentem a gravidade de que naquele lugar pessoas sofreram para que eles fossem livres”, comenta Cristina.
Em maio, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), ligado à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, aceitou parecer de Cristina Meneguello e aprovou o Estudo de Tombamento da antiga sede do DOI-Codi, onde hoje funciona o 36º Distrito Policial, na Vila Mariana, zona sul.
Cristina cita o caso do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O tombamento ocorre não pela beleza arquitetônica, mas pela importância histórica. “As pessoas que pediram o tombamento do DOI-Codi tinham receio de que acontecesse o que houve no Carandiru (antigo presídio paulistano onde, em 1992, foram mortos 111 detentos, pelos números oficiais). Implodir é uma forma de apagar e esquecer.”
Esquecimento e covardia
Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais, é cética em relação aos resultados da Comissão da Verdade. Mas espera que “pelo menos as sessões sejam públicas e que o relatório seja público”, para não cair na lógica da ditadura e “produzir sigilo e esquecimento”. A indicação de Gilson Dipp causou desconforto, pelo fato de ele ter sido representante do governo brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no caso Araguaia. “Ele simplesmente foi testemunha do governo contra as famílias.”
Prédio do antigo DOI-Codi, a central de torturas na capital paulistana, que pode ser tombado por sua importância histórica (Foto:Cadu Gomes/CB/D.A. Press)
Declaração de José Carlos Dias sobre a necessidade de “ouvir os dois lados” também provocou reações indignadas. “É espantoso, ainda mais vindo de uma pessoa que trabalhou com dom Paulo Evaristo Arns. Todos nós respondemos na Justiça a IPMs (inquéritos policiais militares), sob tortura. Ele sabe disso. Nós fomos mais do que investigados. Fomos processados, torturados, exilados”, critica Cecília. Posteriormente, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro deu entrevista ao jornal O Esta¬do de S. Paulo na qual afirmou que só existe um lado – o das vítimas de violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado.
No setor militar, a inquietação já começou. O presidente do Clube Naval, Ricardo Veiga Cabral, anunciou a criação de uma “comissão paralela da verdade”. E em artigo, também no Estado, o general Romulo Bini Pereira, ex-chefe do Estado-Maior da Defesa, conclamou seu pares a romper “a lei do silêncio”.
Apesar de toda a resistência, a deputada Erundina vê condições cada vez mais favoráveis aos trabalhos da Comissão da Verdade. E defende uma nova interpretação para a Lei de Anistia. “Nossa lei é a única no mundo que anistiou tanto os torturadores como os torturados, os que mataram e os que foram mortos, os sequestradores e os sequestrados.” Em 2011, a parlamentar apresentou projeto de lei nesse sentido. O PL 573, nas palavras de Erundina, segue “engavetado” na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Eric Nepomuceno vê sinais de mudança no país, com a instalação da Comissão da Verdade, as atividades públicas e as ações do Ministério Público. Mas critica as manifestações dos militares. “Quem nega a verdade é covarde. O que me choca é que a maioria dos oficiais de alta patente hoje em dia não tem nada a ver com terrorismo de verdade. Ao tentar acobertar, tornam-se cúmplices.”
Ele também refuta a tese dos dois lados: “Quem se insurgiu numa rebeldia lícita contra um governo espúrio já pagou, pagou com a vida. Terrorismo de Estado é crime contra a humanidade”. E vê “certa empáfia dos verdugos” estimulada pela impunidade. “A Argentina está comprovando para todos nós que você pode buscar a verdade e a justiça”, afirma, citando o advogado argentino Eduardo Luis¬ Duhalde: “Virar a página, tudo bem. Mas é preciso ler antes o que está escrito”.
Na cerimônia de posse da Comissão da Verdade – que encerrará seus trabalhos justamente no ano do cinquentenário do golpe civil-militar –, Dilma citou dois brasileiros: Ulysses Guimarães e dom Paulo Evaristo Arns. O primeiro, na promulgação da Constituição, em 1988, afirmou: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Dom Paulo, que a presidenta visitou em maio, escreveu no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais, de 1985: “Não há ninguém na Terra que consiga descrever a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu”.
Fonte: Rede Brasil Atual
 

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